Capítulo 10

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CAPÍTULO 10

No apartamento de três quartos, o sofá com a espuma à mostra, as diversas imitações de ossos feitas de couro espalhadas pelo chão e os pés das cadeiras roídos denunciavam a presença dos dois cães da raça labrador que dividiam o espaço com Karin e Marcelo. O casal aproveitava o dia de folga para colocar o trabalho em dia e acompanhar as notícias.

Karin, sentada no chão da sala, se espremia entre os labradores enquanto tentava prosseguir na leitura do inquérito que investigava mais uma suspeita de desvio de recursos públicos. Vez por outra era preciso desviar as folhas dos documentos das lambidas e cutucadas com focinho que a disputa por atenção entre Zeus e Gabriel desencadeava. A fiscal da lei adorava o contato com seus cães. Para ela o dia só ficava completo depois de alguns minutos deitando e rolando no chão de casa com os dois.

Na mesa de jantar, a alguns metros de onde a esposa lia, com o notebook sobre o tampo de vidro estava Marcelo. Ele finalizava a proposta de uma pauta para investigar as origens dos explosivos que, cada vez mais, eram usados por criminosos para explodir caixas eletrônicos. Ele adorava o trabalho de jornalista investigativo, quase sempre suas pautas resultavam em reportagens de grande impacto. Apesar de gostar dos cachorros, o jornalista passou a evitar o contato exagerado com eles depois que sua alergia aos pelos se agravou ao ponto de causar obstrução da laringe provocada pelo inchaço. Após o susto sofrido no episódio do edema de glote, Marcelo iniciou um tratamento como forma de superar a alergia sem ter de abrir mão dos dois amigos de cor caramelo, mas o contato direto foi reduzido.

- Vou buscar água, quer um copo? - perguntou Marcelo pondo-se à caminho da cozinha.

- Quero amor. - disse Karin, sendo resgatada do labirinto de falcatruas, mentiras e números, pela voz do marido.

Marcelo aproveitou a ida à cozinha para praticar seu esporte favorito: beliscar guloseimas com a porta da geladeira aberta. Nestas ocasiões ele perdia a noção do tempo e das calorias consumidas. O pudim de leite condensado era mais uma vez atacado, à colheradas, quando o som da televisão foi subitamente elevado. Enquanto se deliciava com o sabor do leite condensado cozido, ouviu Karin chama-lo.

- Amor vem cá ver isso! - repetiu Karin, ainda com o controle remoto na mão.

Ao chegar na sala, com o copo d'água para a esposa em uma das mãos e a colher na outra, Marcelo viu metade da tela da televisão ocupada por uma foto de um rosto conhecido. A matéria falava do envolvimento do homem com a recente onda de atentados contra autoridades. Foram mostrados trechos de textos postados pelo homem em redes sociais com mensagens de incentivo à violência e ao racismo.

Algumas entrevistas feitas com pessoas que se apresentavam como vizinhas, conhecidas ou ex-colegas de trabalho delineavam o perfil de um homem extremamente agressivo, com problemas com álcool e possíveis ligações com grupos neonazistas. Entre os entrevistados havia um médico militar fardado. Ele afirmou que o suspeito de ter realizado os ataques já sofrera de estresse pós-traumático, um transtorno muito comum em alguns militares submetidos à eventos ameaçadores. Mas, segundo o entrevistado os assassinatos deveriam ser fruto de um surto psicótico, algo que ocorre quando uma psique já fragilizada entra em colapso.

- Amor, esse aí é o Ramos o marido da Patrícia! - disse Karin assustada.

- Caramba é ele mesmo. Só parece que deram uma mexida na foto.

- Como assim? É ele o Ramos!

- Eu sei, mas ele não tem essa expressão carrancuda. Sabe que eu sou bom nesses detalhes. Acho que deram uma mexida na foto. O que é estranho pois conheço o Jablonsky e ele não tolera este tipo de abordagem. Mas se foi ao ar, ainda mais hoje com tudo que está acontecendo, é por que passou pelo crivo do Jablonsky e isso não faz sentido. - respondeu o marido.

- Amor, agora que você falou é que caiu outra ficha! - disse Karin, se levantado e indo ficar ao lado de Marcelo que ainda segurava a colher melada pela calda do pudim.

- O que?

- A Patrícia não tinha essas coisas de perfil em rede social e o marido dela muito menos. Você lembra o quanto eles eram reservados.

- Tem certeza disto Karin? Vai ver que eles tinham e não queriam você por lá, bisbilhotando. - provocou o marido com um sorriso de canto de boca, antes de voltar para a cozinha.

Karin foi atrás.

- Não amor. Estou falando sério. Pense bem. A Patrícia e as meninas acabaram de morrer e do nada o cara que ela sempre elogiou como exemplo de marido, amigo, pai e profissional se transforma em um maníaco assassino com perfil podre na internet?! - insistiu a mulher, agora na cozinha de braços cruzados ao lado da geladeira.

Quando colocava a colher suja na pia, Marcelo foi tomado por uma outra questão. Algo que seu inconsciente havia capturado e processado.

- Esquisito mesmo foi a rapidez com que um único repórter conseguiu as sonoras. Parece até que todas aquelas pessoas de ambientes tão diversos estavam disponíveis no mesmo lugar para serem entrevistadas. - disse o jornalista caminhando de volta para a sala onde os labradores se divertiam puxando um pedaço do forro do sofá.

- Parem já com isso! Ai, ai, ai! - ralhou Karin.

Marcelo voltou a prestar atenção na televisão. O noticiário fazia a cobertura da morte do diretor da agência nacional de aviação civil. A dinâmica do atentado ainda estava sendo descrita quando a esposa voltou à carga.

- O que você acha amor? Será que ele fez essa porcaria toda? Ou será que estão só pegando alguém para acalmar a opinião pública? Isso tudo é muito estranho. Primeiro teve aquela história da Pat me entregar um envelope misterioso um pouco antes do acidente, parecia estar prevendo a própria morte. Depois esta loucura envolvendo o marido dela! Não é estranho demais?

- Que pacote é esse? Você não me falou nada sobre isso!

- Ah, amor! Não te falei nada pois era coisa boba, coisa de amigas.

- E então?

- Então o que?

- O que existe no tal pacote?

- Apenas uma folha de papel com uma longa sequência de letras e números. Li aquilo tantas vezes, tentando achar algum sentido, que até memorizei. Sabe que sou boa de memória.

- Eu sei.

- O que importa é que a Pat pediu que eu entregasse o envelope ao marido dela caso alguma coisa acontecesse. Por isso eu liguei para ele, transmiti nosso pesar e avisei sobre o envelope.

-E ele?

-Pareceu surpreso. Me pediu para guardar segredo.

-Hum. – grunhiu Marcelo pegando o controle remoto da televisão.

-Amor conheço esse seu jeito. Você percebeu alguma coisa! Me conta, vai. – pediu Karin com voz doce, parecendo se pendurar no pescoço do marido.

- Ainda não tenho certeza, mas acho que se eu der uma revirada vou encontrar muita coisa estranha por trás desta história. - respondeu Marcelo, desligando a televisão logo depois.

- Ué?! Desligou por que?

- Lembre-se do que o médico falou! Nada de fortes emoções, pense no nosso bebe e esqueça toda esta história. Prometo que vou dar uma sondada. Combinado? - perguntou o marido segurando a cabeça da Karin entre as mãos e beijando-a na testa. O mesmo gesto foi repetido, logo depois, só que desta vez na barriga da esposa.

- Tudo bem. Então vem tomar um banho gostoso comigo, vem! Prometo que vou esquecer de tudo, só vou pensar em você e nesse pau gostoso. - convidou uma Karin com os lábios carregados de desejo, mamilos enrijecidos e mãos habilidosamente salientes.

Marcelo não pensou duas vezes, começando a despir a esposa já no caminho para o banheiro da suíte. Zeus e Gabriel aproveitaram a oportunidade para voltar a atacar o sofá. 

Necrose MoralOnde histórias criam vida. Descubra agora