O dia que nos conhecemos

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Cal estava muito ocupado hoje. Cercado por outros oficiais mais velhos que ele, parecia um vermelho nas arquibancadas das arenas em dia de Primeira Sexta. Eu acharia graça se não me sentisse tão excluído.

Se não me sentisse a sua sombra.

Mas não hoje. Já estava há quase três anos acompanhando Cal nessas jornadas pelos fronts, e hoje iria a mais um. Não lutar, obviamente, mas isso era o mais próximo que eu chegaria de uma guerra. E ao menos estaria longe dos sussurros da minha mãe por pelo menos vinte e quatro horas. Ou mais, se tivesse sorte.

Depois que chegamos, fui designado para um quartel general ocupado apenas por altas patentes. Haviam vermelhos aqui, além dos soldados por toda parte, homens e mulheres que serviam as Grandes Casas e agora acompanhavam nossa comitiva. Eram invisíveis para a maioria. Descartáveis. Meu irmão e eu pensamos de forma diferente sobre esta Guerra. Ele acha honroso, uma demonstração de lealdade morrer em nome do país. Eu acho burrice.

Eu estava praticamente sufocando. Haviam guardas me cercando a cada passo que eu dava, e isso já me deixava desconfortável. No castelo era um hábito curioso, mas aqui, onde estava literalmente cercado por inimigos, era uma necessidade. Uma que eu faria de tudo para evitar.

Dei meia volta quando consegui despistar os guardas. Cal estava entretido, debruçado sobre um mapa de Lakeland, decidindo quem deveria ocupar as primeiras fileiras. Enquanto ele olhava os mapas, eu preferia olhar em volta.

O lugar todo já estava destruído. Apesar de estarmos num ambiente de segurança máxima, ocupado apenas pelos grandes generais, o solo esburacado denunciava que ali já fora um cenário de bombardeios. Dos dois lados, eu suponho. A fumaça escura que se erguia revelava um cheiro de pólvora inconfundível, isso sem falar do solo cinzento e infértil. Mais um ponto para eu detestar essa guerra idiota. Não há benefícios, e continuamos destruindo nossas fronteiras. 

Comecei uma caminhada sorrateira, observando um soldado de brinquedo sobre um mapa aqui, fingindo contar os soldados de uma tropa que passava ali. Pouco a pouco, me afastei o suficiente para poder andar sozinho. Um príncipe de quinze anos andando por aí, com certeza era motivo para alarde. Mas um menino qualquer de quinze anos, sujo de terra, poderia facilmente passar despercebido. Então foi o que eu fiz. Me livrei dos emblemas: — que eu não fazia ideia do porquê os tinha — medalhas inúteis que eu não merecia por nunca ter estado em um confronto real, os símbolos da minha casa, suas cores e tudo o mais que poderia me denunciar como sendo de uma família real. Joguei tudo perto de um arbusto, e aproveitei a terra lamacenta para sujar minhas botas e parte do rosto.

Apesar de todo esforço, minhas roupas ainda pareciam melhores do que a de qualquer outra pessoa a minha volta. Não me importei. Queria explorar, saber o que realmente acontecia nas trincheiras. E haviam centenas delas nessa área. Ao longe, eu podia ouvir sons de tiros sendo disparados, provavelmente dos nossos soldados. Decidi me aproximar de uma trincheira vazia, e me abaixei para observar a movimentação organizada. Grupos pequenos de soldados iam e viam, fazendo patrulhas, cavando o solo em busca de zonas minadas e plantando as próprias minas na outra borda da fronteira. Estava tão distraído que mal percebi alguém se aproximar. 

— Não deveria estar aqui.

  Meu sangue congelou quando senti um cano estreito nas minhas costas.

— Eu...

— Está desarmado.

Franzi a testa, me forçando a engolir em seco. Meu disfarce estava funcionando. Me virei devagar, as mãos erguidas.

— Tem razão, soldado.

Forcei minha melhor "voz de comando" e sorri brevemente, aceitando a arma que o garoto a minha frente me oferecia. Ele não parecia ser muito mais velho que eu. No máximo, uns dois anos.

— Não sou um soldado. Mas você com certeza deveria manter uma dessas por perto.

Ele riu, claramente zombando de mim. Ele sabia que eu não era um soldado. Gostaria de saber o quanto ele poderia descobrir de mim só com o olhar.

— Ah, claro. Obrigado, de qualquer forma.

Abaixei a cabeça, tentando me concentrar em segurar a arma corretamente e não ficar totalmente corado por causa da risada dele. Seria o fim se ele visse meu sangue prateado, e eu teria que voltar para perto de Cal e de todos aqueles guardas. Me virei para o outro lado da trincheira, procurando mudar de assunto ou esperar que ele fosse embora.

— Fica mais interessante quando elas explodem — ele fala primeiro, depois de um longo silêncio constrangedor. Olhei para ele, confuso, para então ele explicar — As minas. Claro, não é tão legal quando é sangue vermelho.

Balancei a cabeça, como se estivesse entendendo, mas na verdade estava notando o sangue vermelho se destacar nas bochechas dele. Um vermelho servo das grandes casas teria me reconhecido na certa. Mas ele não parecia esse tipo de criado. Engoli em seco, e voltei a olhar para a movimentação além da nossa trincheira.

—  Nada é legal quando envolve sangue vermelho.

  Com o canto do olho, percebi ele baixar a cabeça. Sorrindo.

— Do quê está rindo? — tive que perguntar.

— Você é prateado.

Senti o sangue sumir do meu rosto, me deixando mais pálido ainda.

— Eu...

— Não tente negar. Está tudo bem. Seja lá o que você pretendia fazer  nessas trincheiras, contando que não seja jogar uma bomba em mim, será mantido em segredo. Eu prometo.

Eu hesitei por um momento, para então estender uma mão para ele. 

— Obrigado.

—  Não tem de quê — ele segura minha mão, dando um aperto — Meu nome é Thomas.

  — M...— eu não tinha mais como negar. Ele provavelmente viu a pulseira no meu braço, então tudo que faço é soltar um suspiro — Maven. Meu nome é Maven.

Ele se retrai, mas não solta meu braço. Seu olhar está fascinado.

— Você pode controlar o fogo! — não entendi sua risada, pois normalmente isso não era uma super novidade, mas confirmei com um sorriso. O dele era contagiante.

— Si...

— Você pode explodir aquela mina ali? — ele apontava para o lado oposto onde os soldados estavam— Estou há dias devendo uma aposta, e se aquela bomba explodisse, eu teria o dobro do almoço durante um mês.

Eu ri, mas então vi que ele falava sério. Arregalei os olhos, me voltando para o campo minado do outro lado.

— Não acha isso perigoso?

— Ah, ninguém anda por aquele lado. E eu mesmo tive que plantar aquela lá. Garanto que não há mais nenhuma por perto.

Respirei fundo, considerando. Se eu fizesse apenas uma faísca passar por ali, chamaria atenção não só para mim, mas para ele também. Por outro lado... que mal teria? Era apenas uma mina. E eu poderia estar ajudando a única pessoa que me tratou bem sem formalidades ou obrigações. Nunca ninguém me tratou assim antes, como uma pessoa. Thomas foi o primeiro.

Sorri, e assenti para ele.

  — Tudo bem — falei, vendo ele sorrir e segurar a arma que havia me dado — Mas só aquela.  

  — Tenha cuidado — por um segundo, nossas mãos se tocaram. Senti como se meu coração fosse sair pela boca.

  Devagar, me virei e dei alguns passos dentro da trincheira. O buraco onde estávamos parecia ter sido alvo de alguma bomba recentemente, pois o cheiro de pólvora e cinzas ainda estava lá. Me encostei contra uma das escadas de madeira e, erguendo uma mão, concentrei uma pequena faísca azulada entre os dedos. Quase podia ouvir a animação de Thomas logo atrás de mim. Sorrindo, deixei que o espírito de diversão dele me invadisse também. Joguei a chama acesa direto no montinho de terra removida, e demorou apenas dois segundos para que ela atingisse seu alvo. A terra subiu, jogando areia preta por todo lado com barulho e cheiro de pólvora.

Eu caí para trás, e quando vi que ninguém havia se machucado, acabei rindo, e do outro lado Thomas também ria. Seu rosto estava sujo de terra como o meu.

Mas nunca esteve tão puro em minhas memórias.

O Thomas que eu me lembro (P.O.V: Maven Calore)Onde histórias criam vida. Descubra agora