Elara jamais conseguiria apagar

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Por obra do acaso, ficamos naquele front por quase um mês. Todos os dias eu dava um jeito de escapar das reuniões com os oficiais. Se eu não fugisse, poderia morrer de tédio. O único que gostava - ou pelo menos parecia gostar daquilo tudo - era Cal.

— Mavey, o que acha?

Virei o rosto, sendo tomado por um frio na barriga. Cal ergueu os olhos do mapa, e toda a atenção da sala se voltou para mim. Pigarreei. Eu não estava prestando atenção em nada, mas me forcei a contribuir com qualquer coisa útil.

— Ham... acho que os soldados de Lakeland podem atacar a qualquer momento. Temos que estar preparados.

Franzi a testa, tentando soar sério o suficiente para que eles me ignorassem ou confiassem no que eu dizia. Ambos seriam lucro. Num segundo mais tarde, meu irmão deu de ombros, concordando com seja lá o que as minhas palavras implicaram, e fechou o livro enorme que segurava. Pronto, acabei de mandar dezenas de soldados vermelhos em direção à morte. E nem fiz muito esforço para isso.

Com um suspiro, eles deixaram a sala. Não tive que sair sorrateiramente como das outras vezes. E também não tive que sair procurando por ele.

— Encontrei você.

Nem precisei virar, e já estava sorrindo.

— Você não deveria estar aqui. Agora estragou meu disfarce.

— Pare de reclamar. Venha. 

Thomas era mais alto, e também mais rápido que eu. Ele me levou por atalhos que eu não fazia ideia que existiam, bem debaixo das salas dos oficiais. Normalmente eu o teria encontrado nas trincheiras, talvez levado alguma comida dos banquetes que apenas eu era permitido ir, ou quem sabe teríamos ido apenas sentar sobre a grama rara por trás do quartel. 

— Onde estamos indo?

— Shhh. — paramos no meio de um corredor pouco iluminado, e permaneci em silêncio como ele pediu. Depois, ele ergueu sua mão, sem olhar para mim —  Tire essa roupa.

— O quê?

— A roupa de príncipe.

— Ah.

Levei um segundo para desabotoar o símbolo da Casa Calore. As cores se fixavam em toda minha roupa, e hoje em especial eu estava com uma farda de oficial. Respirei fundo, e fiz o que ele mandou. Logo em seguida, Thomas me passava roupas feitas com um tecido grosseiro, provavelmente dos criados, na cor cinza e marrom.

— Vão servir.

— Onde conseguiu isso? Não estou vestindo roupas de alguém morto, estou?

Ele ria enquanto eu me vestia, e pude ver pelas sombras que ele me encarava.

— Não sou um assassino, Mav.

— Eu sei que não.

Foi um sussurro, mas poderia ter sido apenas um pensamento alto. O que estava acontecendo comigo? Até a forma como ele dizia meu nome me fazia gelar. Logo eu, um príncipe do fogo.

Ele se virou rápido demais, seguindo pelo corredor, mas segurei sua mão. Ele para, seu rosto numa confusão que aprendi a admirar. Num impulso, dei alguns passos em sua direção.

— Eu... só queria dizer obrigado.

— Você diz isso sempre.

— Não, é só que...

Não pude falar mais nada, porque ele me silenciou com seus lábios sobre os meus.

Em mil anos, eu não saberia dizer quando exatamente comecei a ter sentimentos por ele. Achei que não fosse possível. Não depois do que ela fez comigo. Do que continuava fazendo. Fui tomado pelo medo de ter que enfrentar minha mãe quando voltasse, e quando ela descobrisse com certeza tentaria tirá-lo das minhas lembranças.

Minha mão se fechou, mas não recuei. Senti pela primeira vez a força de um calor que não era o meu próprio. Devagar, cedi a ele, e com a respiração vacilante, o beijei de volta.

Eu não deixaria Elara controlar minha vida. Minhas ações. Meus sentimentos. Eram parte de mim, e por mais que ela dissesse o contrário, me faziam mais forte. O amor que sinto por meu pai, por Cal, por ela. Por Thomas. Mesmo que eu sinta ela os destruindo, pouco a pouco, sei que esse tipo de amor ela não pode tirar de mim.

Thomas se afasta primeiro, e percebo suas bochechas coradas. O vermelho lhe cai bem.

— São só roupas velhas, Maven. Não precisa agradecer.

Nós rimos, mas a sensação das mãos frias não me abandonou até sairmos daqueles corredores sombrios.


O Thomas que eu me lembro (P.O.V: Maven Calore)Onde histórias criam vida. Descubra agora