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  Ao sair para o ar fresco da noite, Helen Grace se sentia leve e feliz. Diminuiu o passo e saboreou aquele momento de paz, achando graça da multidão em torno dela, que lotava as lojas.Estava a caminho da Feira de Natal de Southampton, que se estendia ao longo da parte sul do centro comercial de WestQuay. Era um evento anual— uma oportunidade para comprar presentes originais, feitos à mão, que não figuravam em nenhuma lista de desejos da Amazon. Helen odiava o Natal, mas, todos os anos, sem exceção, comprava alguma coisa para Anna e Marie. Era seu único ato festivo e ela sempre caprichava. Comprou bijuterias, velas perfumadas e outras quinquilharias, e também não economizou nos comestíveis: levou tâmaras, chocolates, um pudim de Natal por um preço obsceno e uma bela caixa de chocolate com menta, a iguaria predileta de Marie.                                                                                                                                                   Pegou sua Kawasaki no estacionamento de WestQuay e atravessou rapidamente o trânsito do centro da cidade em direção a Weston, que ficava a sudoeste. Afastava-se da alegria e da riqueza e seguia rumo à privação e à desesperança, vítima da atração inexorável exercida por cinco blocos monolíticos de torres que se destacavam na paisagem local. Há anos esses blocos saúdam quem chega a Southampton pelo mar. No passado faziam jus a essa honra: eram imponentes, modernos e otimistas. Mas, agora,a história era bem diferente.                        Melbourne Tower era de longe o mais dilapidado. Há quatro anos uma fábrica ilegal de drogas explodiu no sexto andar. O estrago foi grande;praticamente destruiu o prédio. O conselho municipal prometeu reconstruí-lo, mas a recessão enterrou esses planos. Ainda estava tecnicamente escalado para uma restauração, mas agora ninguém acreditava que isso iria acontecer. Então o prédio continuava do mesmo jeito, destruído e mal cuidado, abandonado pela grande maioria das famílias que havia morado ali. Agora era território de viciados, invasores e pessoas que não tinham para onde ir. Era um lugar sórdido, esquecido.                     Helen estacionou sua moto a uma distância segura das torres e seguiu apé. Em geral, as mulheres não costumavam caminhar por ali sozinhas à noite, mas Helen nunca se preocupou com sua segurança. Era conhecida na região, e as pessoas tendiam a manter distância, o que era conveniente para ela. Estava tudo calmo naquela noite, com exceção de alguns cães que xeretavam um carro queimado. Então Helen abriu caminho em meio às seringas e camisinhas e entrou na Melbourne Tower.No quarto andar, parou na porta que indicava 408. O lugar havia sido um apartamento simpático e confortável, mas agora parecia o Fort Knox. Aporta estava coberta de trancas, porém o mais perturbador eram as grades— firmemente trancadas com cadeados — que reforçavam a entrada principal. A repulsiva pichação que cobria a porta do lado de fora — idiota,retardada, mongol — dava uma pista da razão pela qual o apartamento eratão protegido.                                                                                                                                                               o protegido.Ali viviam Marie e Anna Storey, mãe e filha. Anna era completamente incapacitada; não falava, não tinha condições de se alimentar nem de fazer suas necessidades sozinha. Tinha 14 anos agora e dependia da mãe, uma mulher de meia-idade, para tudo. Marie, sua mãe, fazia o melhor que podia.Vivia de caridade e de doações; fazia compras na Lidl e economizava no aquecimento. Estavam bem assim; afinal, era a vida que lhes cabia, e Marie não era propensa à amargura. O problema eram os arruaceiros da região. Ofato de não terem nada para fazer e de virem de famílias desestruturadas não era desculpa. Aqueles moleques eram delinquentes, que gostavam de humilhar, intimidar e atacar pessoas vulneráveis, como uma mãe e sua filha.Helen sabia de tudo isso porque tinha um interesse especial pelas duas.Um dos vagabundos — Steven Green, um viciado com a cara coberta de espinhas, que havia abandonado a escola — tinha tentado colocar fogo no apartamento delas. Os bombeiros chegaram a tempo, e os danos ficaram restritos ao hall e ao quarto da frente,mas o efeito sobre Marie e Anna tinha sido devastador. As duas estavam absolutamente aterrorizadas quando Helen as interrogou. Aquilo era tentativa de homicídio, e alguém deveria ser responsabilizado. A policial fez o máximo que pôde, mas o caso nunca foi a julgamento, por falta de provas. Helen fez de tudo para que elas se mudassem, mas Marie era teimosa. O apartamento era a residência da família e tinha sido preparado para atender às limitações de mobilidade de Anna. Por que elas deveriam sair dali? Marie vendeu tudo de valor que ainda possuía para investir na segurança do apartamento. Quatro anos depois, a fábrica de drogas que funcionava no prédio explodiu. Antes disso,o elevador funcionava e o apartamento 408 era basicamente um lar feliz.Agora era uma prisão.   O Serviço Social deveria, supostamente, visitá-las regularmente, para ficar de olho nelas, mas o pessoal evitava aquele lugar como quem foge da peste, e as visitas, na melhor das hipóteses, eram rapidíssimas. Então Helen,que tinha pouco a fazer em casa à noite, costumava aparecer por lá. Foi por isso que estava lá quando Steven Green e companhia voltaram para terminar o serviço. O sujeito estava chapado como sempre e segurava uma lata de gasolina. Ele tentara colocar fogo no apartamento com um rastilho caseiro. Só que não teve nem chance. O cassetete de Helen o atingiu no ombro, depois cruzou o pescoço e o fez esborrachar-se no chão. Os outros caras que estavam com ele foram pegos de surpresa pela súbita aparição de uma policial, então largaram suas respectivas bombas e correram. Alguns conseguiram escapar, outros não. Helen tinha sido bem treinada nas técnicas de puxar o tapete de suspeitos em fuga. Estragou o ataque deles e,não muito tempo depois, teve o grande prazer de ver Steven Green e  três de seus amigos mais próximos sentenciados a uma pena considerável na prisão. Algumas vezes seu trabalho rendia boas recompensas.                                                                                                                        Helen conteve um arrepio. Os corredores sujos, as vidas partidas, as pichações e a sujeira lembravam demais o ambiente em que ela própria fora criada; era impossível aquilo tudo não lhe provocar alguma reação. E vocavalembranças que ela lutara com todas as forças para reprimir, e que agora empurrava com mais força ainda para o fundo de sua memória. Estava ali por causa de Marie e de Anna — e se recusava a deixar que alguma coisa afetasse seu ânimo naquele dia.                                                                                                                                                                   Bateu na porta três vezes 

— era o código secreto delas — e, após muitas trancas abertas, a porta se abriu.

 — Olha o sopão da madrugada! — brincou Helen.

 — Vai te catar! — veio a resposta previsível. 

Helen sorriu enquanto Marie abria a grade externa para deixá-la entrar.Seus pensamentos sombrios já estavam se acalmando; a acolhida "calorosa"de Marie sempre tinha esse efeito sobre ela. Uma vez lá dentro, Helen distribuiu os presentes, recebeu os seus e se sentiu completamente em paz.Por um breve momento, o apartamento 408 era seu santuário, em meio a um mundo escuro e violento.

agradeço por você esta lendo obgd.

essa historia continua...

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