O que mais me fascina em si é a parte lateral da mão com que escreve.
Em cada noite que se sentou na escrivaninha de madeira coçada e conduziu a pena pelo papel, a sua mão acompanhou o correr das palavras; ora lenta, com o tédio de um gato gordo e velho, ora urgente, com uma necessidade quase sobre-humana de entrar no papel.
Esse caminhar sobre as frases, molemente angustiado, arrastou as palavras e prendeu-as na parte lateral da mão de quem as escreveu.
A mão de um empresário, em nada me encanta; ela guarda palavras entediantes como "empreendedorismo" e "sinergia"; a mão de um apaixonado vulgar, também nada me diz para além da triste condição de um amor que se esgota na sua totalidade.
Mas a sua mão, a mais sublime e grandiosa das mãos, tem nela as mais belas palavras algumas vez escritas! Na sua pele mármorea mora D. Sebastião, numa cabana de nevoeiro; nas cavidades frágeis do dedo mindinho, habita o amor da doce Ophélia, tão inocente mas tão maliciosa, que tanto dá asas como cria raízes... e junto ao pulso que se agita nervosamente, uma longa mesa, onde jantam (ruidosamente, sempre ruidosamente) Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, e tantos outros, todos os que haveis criado na sua mente e que tiveram também na sua, sempre angustiada, sempre consumida, sempre insatisfeita, mão.
É como se tivesse uma alma com três casas: uma na mente, debaixo do chapéu de côco, outra no 1º direito da sua mão, e uma última, junto ao bolso da batina, com cheiro a tabaco e bagaço...mas do lado de dentro, junto ao coração que não bate mais.
2014
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Quando 'te vês' é tudo.
RandomIsto não é uma história. Isto não é um romance. Isto não é ficção. Isto sou eu, como me vejo. E quando me vejo, é tudo. *Título retirado de um poema de Álvaro Lapa.