O binóculo desfocado

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Despertou após uma noite mal dormida, os raios do sol atingindo sua retina. Seus olhos recaíram no binóculo sobre a escrivaninha ao lado da sua cama. Encontrou o objeto de aspecto ainda novo no dia anterior, simplesmente jogado próximo a uma lixeira na rua. Tal fato lhe despertou a atenção, então o tomou para si, examinando-o com curiosidade e fascinação durante o trajeto de volta até sua casa.
Não sabia se era sua imaginação, ou uma espécie de quimera inconsciente, mas ao olhar através do binóculo tudo à sua volta parecia mais real, o fingimento não existia, as máscaras que cobriam o verdadeiro eu dos indivíduos não estava mais ali. Balançou a cabeça em negativa, como se o gesto fosse capaz de devolver-lhe a sanidade que tinha certeza de que havia perdido. Pensou que as noites em claro tentando escrever algo que lhe satisfizesse começavam a cobrar seu preço.
Levantou-se e caminhou até a janela, afastando a cortina para que a imagem da cidade caótica abaixo pudesse ser vista. Olhou mais uma vez para o binóculo e suspirou pesadamente. Banhou e vestiu nova roupa e, antes de sair, pegou o binóculo. Já na rua, resolveu que desvendaria os mistérios do objeto, ou se entregaria de vez à sua loucura.
Sentou-se do lado de fora de um pub e pediu um café. Mais à frente, um grupo de amigas encontrava-se às gargalhadas. A mais sorridente das garotas de repente tomou um semblante tão tristonho, que parecia nem mesmo haver expressão em seu rosto. Obra do binóculo. O peculiar objeto, ao que parecia, deturpava a realidade. Mas então pensou: talvez ele mostrasse a realidade de fato. Olhou mais uma vez para a garota sorridente, desta vez sem usar o item estranho. Era mesmo possível que toda aquela alegria apenas encobrissem um interior tão desolado? Sabia a resposta, e era deveras doloroso conhecê-la.
Terminou seu café e seguiu caminho indefinido pelas ruas. Usava o binóculo e via o interior de cada pessoa, quase sempre diferentes do que externavam. Começava a se sentir triste e frustrado com tudo e com todos, com a vida. Parou em frente a uma vitrine espelhada, viu seu reflexo e hesitou em olhar diretamente para seus olhos atrás do binóculo. Semicerrou os olhos até tê-los fechado e quando os abriu novamente, por uma fração de segundo, viu somente o breu, uma tênue luz brilhante tentando sobressair-se no meio. Deu as costas para a vitrine e caminhou até encontrar a lixeira em que achara o binóculo no dia anterior.
Cravou os olhos no objeto seguro em sua destra e logo o jogou rente à lixeira, saindo sem olhar para trás. Temia que o futuro daquele objeto perdurasse o mesmo: encontrado, descoberto e descartado. Pois ninguém sabia lidar com ele, com sua verdade, com sua revolução. Era difícil para muitos aceitar a realidade. O mundo visto através do binóculo tinha uma certa beleza, mas era incômodo e até assustador. Ninguém estava preparado para ver esse mundo.

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