Algo acordou dentro de mim

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Eu não sei como e nem quando me tornei uma pessoa forte o suficiente para ser, viver e ficar feliz sozinha. Nada me faltava... Eu não precisava de nada. Eu tinha dinheiro, posses, um bom currículo, instruções, e independência de modo geral, eu tinha tudo e não sentia falta de absolutamente nada... Tirando às vezes quando faltava em cima da hora e no meio do mato, o filme da minha câmera analógica favorita.

Até que o vi.

Entro no Saint-Regis, meu café favorito perto de casa, curtindo o vento frio que me beijava e sacudia meus cabelos longos e acobreados para lá e para cá enquanto me equilibro com facilidade no salto quadrado e baixo da minha bota. Sento na mesma mesa de todos os dias, Claire me vê e logo sou atendida sem dizer uma palavra. Meu chocolate quente chega soltando fumaça, e só por isso fico feliz.

- Aqui seu favorito...

Ela diz colocando a xícara em minha frente. O cheiro faz com que eu me sinta em casa. Antes de flutuar para o Brasil, para minha casa, para meus pais... Resolvo me esforçar para manter um diálogo digno com alguém.

- Olá, Claire. Como está?

- Estou bem, e você...? Apareceu algum trabalho francês novamente? Mais fotos da torre Eiffel para o jornal brasileiro?

Ela pergunta rindo e se sentando em minha frente. Droga.

- Não. Estou de férias. Já faz alguns dias que não pego projeto novo, mas logo, logo tô de volta.

Respondo toda essa frase balançando a cabeça e sorrindo um sorriso meia-boca bem forçado, esperando sinceramente que ela não tenha notado minha falta de vontade para conversar. Estava frio, eu queria apenas tomar meu chocolate e rever algumas fotos do Sul que tinha tirado na semana passada... Será que isso era pedir muito?

Ela me olha desconfiada, e realmente não sei o que a faz desistir, mas se levanta, e olha pra mim com ternura.

- Ah, que legal! Preciso tirar as minhas já faz alguns anos. Depois vamos combinar de sair e tomar algo juntas, qualquer hora. Me liga!

- Claro! - minto. - Combinado! - minto de novo e sorrio.

Claire acena e volta para trás do balcão que tinha saído.

Eu sabia que ela sabia da morte de meus pais no Brasil. E ela sabia que eu sabia. E nós duas não íamos dizer nada. Não éramos mais amigas, sabíamos disso. Ela sabia que ainda não a tinha perdoado, foi no tempo de escola, mas sou aquariana: Sou super do bem, mas nunca esqueço!

O relógio marcava 17:15hrs, mas parecia que aquele papo tinha durado mil anos, eu me sentia ali como se o tempo tivesse corrido lentamente. Forcei-me a olhar somente para as fotos que tirei, as casinhas, o colorido, o excesso de flores nas janelas, a menina de amarelo com gorrinho combinando, a torre do relógio marcando três da tarde, e um homem sentado no café De Bertonne olhando para mim enquanto tirava sua foto.

Meu estômago vibra de leve naquele momento. Não me lembrava dele nem de ter tirado aquela foto, podia jurar que naquele momento ele não estava ali, não estava... Mas eu devo estar como sempre com a cabeça na lua, e não o tinha notado.

Mas caramba! Como eu poderia lá, naquele dia, não tê-lo visto?! Tão lindo, olhos rasgados, barba por fazer, pele morena, cabelo liso e negro, sério e...

- Afff... Tô ficando maluca! Só pode...

Eu disse isso tão alto que Claire olhou para mim e sorriu. Tive a sensação de que ela concordava.

Coloquei a nota na carteira que já estava na mesa, e me levantei para me retirar, eu já estava cansada e precisava de um bom banho. Minha caminhada aquele dia mais cedo ao jardim de Versalles me ajudou a refletir em algumas coisas que precisava, mas parece que tinha sugado toda minha energia. Vai ver fazia um tempo que eu não meditava e meu corpo estava sentindo falta ou eu apenas precisava sentar e relaxar. Não sei... Tanto faz... A única certeza que eu tinha é que eu precisava muito da minha cama e de um banho.

KAI - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora