Não julgueis para não serdes julgado - parte 1

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— Mantenha a guarda alta, Hevan! Vamos! Esquerda! Direita!

O pobre Hevan defendia-se da forma que podia, muito mais por reflexo do que por habilidade. Ainda era um mero aprendiz, sedento por absorver os ensinamentos do seu mestre espadachim, Mikelah Altenfurst.

Pouco se sabia da origem do jovem Hevan Arlock. Fora encontrado ainda bebê pela esposa de Mikelah, Thelma. Estava dentro de um cesto de vime, às margens do Rio Sul, coberto apenas por uma manta branca com seu nome bordado. Causou estranheza, afinal não era comum encontrar bebês perdidos em margens de rios – principalmente um com orelhas tão pontiagudas, corpo esguio e pele pálida como uma manhã de outono. Hevan era um elfo, e, historicamente, poucos humanos tiveram o privilégio de ver um bebê elfo. Os infantes ficavam escondidos junto às suas famílias em vilarejos no meio de algumas das florestas espalhadas pelo mundo de Ellora, um pequeno planeta dividido em cinco grandes reinos: Arche, Fenín, Burigon, Melquiadar e Zoestra.

O senhor Altenfurst, um grisalho senhor de aparência cansada, mas de corpo muito bem cuidado, e Thelma, que falecera dois anos antes, vítima da peste negra, não tiveram filhos, pois o trabalho como Alto Comandante do exército do reino de Arche consumiu muito do tempo do homem. Quando se aposentou, o rei Julius Reichdall VI ordenou que ele se mudasse da capital Ulrich para a cidade de Marts, no sudeste do reino, a fim de abrir uma academia de soldados e aumentar o número de integrantes do exército na costa sul. Embora vivessem em tempos de paz, o rei achava melhor prevenir-se do que remediar.

Como já estava em idade avançada e com a vida mais tranquila, Mikelah adotou o pequeno Hevan e passaram a morar juntos em um casebre logo acima da academia de soldados. Mikelah sempre disse a ele que manteve seu nome, conforme escrito na manta, porque acreditara que ele havia sido uma dádiva dos Deuses, uma segunda chance de ter uma família e um herdeiro, e não queria deixar os Deuses zangados ao dar-lhe um nome diferente.

Apesar da alegria que a criança trouxe à sua vida e a de sua esposa, Mikelah imaginava que Hevan teria problemas em viver em uma cidade conservadora tal qual Marts, por ser um não-humano, já que os habitantes de lá não eram acostumados a conviver com seres de outras raças. 

Tal previsão mostrou-se acertada: a infância de Hevan fora muito complicada. Seguidamente via-se marginalizado pelo povo e, principalmente, pelas crianças da cidade. Tiravam sarro de seu corpo magro, de sua pele clara, dos seus olhos cinzentos e repuxados como os de um gato, mas acima de tudo, de suas orelhas pontudas. A maioria da população nunca se referia a ele pelo nome, mas sim por "elfo", "orelhudo", "criatura" e até "coisa". O que Hevan não sabia é que vários deles, na verdade, sentiam inveja. Elfos eram criaturas magníficas e muito belas. Sua forte ligação com a natureza lhes presenteara com várias habilidades além da compreensão dos néscios habitantes de Marts, e isso os incomodava. Afinal, é intrínseco do homem temer aquilo que não entende.

Hevan, que em algumas semanas à frente faria dezenove anos, tinha uma personalidade forte e era um tanto introspectivo – muito devido ao tratamento que recebera durante sua juventude. Sabia muito bem o que queria ser na vida: um soldado de alto escalão, assim como Mikelah havia sido. Por esse motivo começou, a partir de sua maioridade, a treinar com ele a arte da luta com espadas. Tinha consciência que a antiquada Marts não lhe traria grande futuro, mas guardava a esperança que a cidade real de Ulrich, por ser grande e cosmopolita, o acolheria sem se importar com sua raça.

Após mais alguns minutos de estudos práticos de técnicas de combate, Mikelah, satisfeito, resolveu terminar o treino.

– Muito bem, Hevan. Está cada dia mais aplicado. Irá se tornar um grande soldado!

- Obrigado, mestre.

Para evitar falatórios e até mesmo problemas entre a família Altenfurst e os habitantes da cidade, desde criança Hevan fora instruído a não o chamar de "pai", mas sim pelo nome ou de "mestre", após virar seu aprendiz. Do mesmo modo, Mikelah nunca o chamou de filho, muito embora tratasse-o como tal. Tanto Mikelah quanto Thelma eram um verdadeiro porto seguro para Hevan, os responsáveis por fazê-lo sentir-se protegido e querido num ambiente que normalmente lhe era hostil.

Mikelah guardou as espadas de madeira que usaram para o treinamento em um cavalete postado em uma parede próxima e puxou de cima dela um pedaço de pano para secar o suor da testa e das mãos.

– Hevan, preciso que vá até o centro comprar alguns mantimentos – disse, passando o pano por entre os dedos da mão direita. – A lista está sobre a mesa da sala. Vá se banhar e depois faça-me esse favor.

– Sim, senhor! – respondeu o jovem, fazendo uma reverência, da mesma forma que todos os alunos de Mikelah faziam quando eram dispensados.

Após um bom banho para recuperar as forças gastas no treinamento, Hevan pegou a lista de mantimentos e partiu rumo ao centro da cidade.

As ruas de Marts eram cercadas de edifícios feitos de pedra, com vigas e pilares feitos de madeira maciça, dando a ela um aspecto cinzento. Não era uma cidade grande, mas mantinha um comércio muito forte, por ser passagem entre os habitantes dos reinos do sul e a capital de Arche. Possuía uma grande quantidade de barracas e tendas armadas na praça central, ao redor de um poço que servia como bebedouro para cavalos, bem à frente da igreja.

Ela, por sinal, era o lugar favorito de Hevan. A paz e o silêncio que ambientavam a Catedral de Marts o fazia sentir-se leve, longe dos problemas do cotidiano. Além disso, nela morava a única pessoa que Hevan tinha a possibilidade de chamar de amiga: Sarah, a clériga.

...

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Arlock - um conto de Ellora [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora