Capítulo III

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 A viagem de volta começou comigo e minha mãe quietas, enquanto música tocava. Eu havia conectado meu celular no carro, então tocava músicas que eu gostava. Mesmo quando alguma não era muito o estilo da minha mãe, ela não reclamava por causa de tudo isso que havia acontecido comigo.

 Mas esse silêncio não durou muito. A segunda parte da viagem começou quando minha mãe respirou fundo e começou a conversar:

 "Filha..."

 Ela parou por um momento como que para pensar se falar no feminino comigo estava certo, e então continuou:

 "Eu sei que as coisas andam complicadas, e que você ainda está processando isso tudo, mas acho que tem várias coisas que devemos conversar."

 Recuei por um instante, sem a mínima vontade de conversar sobre a minha situação, mas, sabendo que era necessário conversar, deixei-a continuar.

 "Muita coisa mudou. Eu sei o quanto isso é difícil para você, mas espero que saiba que é difícil para mim também. Não só por causa do dinheiro que estou tendo que gastar, ou da dificuldade de provar pela lei que você é quem diz ser, ou por que tenho que confiar no que você diz sem provas, mas por que você sempre foi... Meu filho. E essas mudanças me afetam também, sabe? Eu me importo muito com você."

 Uma lágrima começou a escorrer, mas ela a enxugou e continuou:

 "Eu preciso que você seja totalmente sincera comigo sobre tudo isso, ok? Mesmo que seja estranho, ou algo em que você ainda esteja em conflito, preciso que você me fale, tá? Preciso que você me ajude a te ajudar."

 Falei que sim, eu ia ser sincera, ela deu um pequeno sorriso.

 "Como você tem se sentido? Psicologicamente?"

 Abri a boca para falar que estava normal, mas respirei fundo, e falei:

 "Não muito. Eu... estou confusa. Essa própria palavra já me confunde, estou tentando me acostumar com palavras no feminino, mas às vezes ainda é estranho. Até essa minha voz... E essas roupas ainda..." com isso estiquei parte do meu sutiã para mostrar como exemplo. "Ainda são estranhas em mim. Parece que tudo tá, mesmo que um pouco, errado."

 "E ainda tem os sentimentos. Tudo isso que eu falei, é estranho, mas tem coisas, momentos, em que eu me sinto bem. Como quando me vi desfilando na frente do espelho, ou quando eu percebi que chamava atenção, ou até algumas poucas vezes em que o pronome feminino pareceu... Correto. Esses sentimentos me parecem errados, estranhos, e ruins."

 Ela parou por um instante, surpresa com tudo o que eu havia dito. Eu também estava surpresa. Eu não estava planejando contar tudo isso, foi tudo muito espontâneo, e na verdade, eu não tinha pensado em tudo aquilo antes. Eu realmente me sentia assim. Uma nova pessoa. Feminina. Mas tudo isso parecia errado, como se eu devesse me julgar por me sentir assim.

 "Filha..." ela começou a dizer. "Não entendo por que se sentir assim. Não vejo o que tem de estranho, mesmo. É quem você é."
 "Não é!" eu respondi. "Eu não devo ser assim. Eu não devia me sentir bem, em nenhum ponto, sobre o que aconteceu. Eu me sinto... errada!"

 "Mas é você, filha." Ela começou a me responder com uma voz serena e calma, mais calma que de costume que me assustei por um momento, mas então me acalmei com o tom.

 "Essa agora é você. Não é estranho agora e não seria estranho se você ainda fosse um garoto. Você conseguir ficar feliz é tudo o que importa, não importa o que aconteça, não há por quê desistir da felicidade."

 Eu continuei olhando para ela por alguns instantes. O rosto dela estava com um grande sorriso, e olhos que pareciam estar segurando lágrimas como barreiras. E então, comecei a chorar. Chorei muito, mais do que eu achei que conseguia. A segunda vez no dia, um choro que veio de repente. Pensei depois até se havia alguma relação entre isso e meu novo eu.

 Ela me deu a mão, já que não conseguia me abraçar no carro, e continuamos na estrada, minhas músicas tocando.

 Tanta coisa havia acontecido, que só então percebemos que estávamos com bastante fome. Erm 14:30 e ainda não havíamos comido nada, nem tomado café da manhã. Paramos em um McDonald's do lado, e entramos. Pedi o hambúrguer de sempre, com batata grande e Nuggets. Sentamos para comer, e felizmente, a fome era tanta, que mal conversamos. Já fui mordendo meu hambúrguer, suculento, sentindo o sabor do bacon junto com a carne, e um queijo perfeitamente derretido. E daquelas batatas, crocantes, salgadinhas. Quando meu hambúrguer estava pela metade, parei. Olhei para ele. Olhei para minha mãe, que havia pego um hambúrguer pequeno e simples, e estava terminando-o. Eu não conseguia comer mais. Minha batata também estava pela metade, e eu nem havia aberto meus nuggets. "Mãe..." comecei a falar. Ela me entendeu. Pedimos uma sacolinha e levamos o resto para casa. Levei meu refri, que tinha sobrado, para tomar no carro. Só não estava na metade, pois mesmo com todas as mudanças, minha enorme sede ainda existia.

 Logo, chegamos em casa. Eu já estava indo para o meu quarto quando minha mãe me chamou, me lembrando das várias sacolas de roupa. Tirar as sacolas do carro demorou um pouco mais do que o usual, já que eu costumava pegar todas de uma vez para não precisar de mais uma viagem, mas agora não conseguia segurar tantas de uma vez. Subimos as sacola para o meu quarto, minha mãe saiu, e antes de eu arrumar e ver minhas novas roupas, me joguei na cama e fiquei olhando para o teto.

 "E agora?" pensei. "O que falta fazer? Será que eu devo contar para as pessoas sobre o que aconteceu? Não, não, eu não tenho provas, mas eu sinto que preciso contar para mais alguém. E antes de tudo, eu preciso de um novo nome".

 Levantei da cama com tanta pressa que fiquei tonta, sentei na minha cadeira e liguei meu computador. Percebi que meus pés nem encostavam no chão, que a cadeira(que eu antes considerava um tanto baixa) estava muito alta para mim. Abaixei ela, e olhei em volta, percebendo como tudo no meu quarto realmente parecia maior em comparação à mim.

 O computador ligado, entrei em Documentos e comecei a escrever ideias de nomes. Digitar assim era um pouco diferente, por conta das minhas unhas que estavam um pouco, mesmo que não muito, maiores e mais femininas. Só não estavam pintadas. Ainda.

 Tentei pensar em nomes. "'Leia', de Star Wars? Não, muito geek. Elizabeth? Não, muito longo. Meu nome era Marcos, então... Márcia? Não, com certeza não esse."

 Passei um bom tempo escrevendo nomes no computador, e escrevendo os motivos do por que não seria cada nome.

 "E talvez... Olívia? Não, muito Popeye. Apesar de ser um nome bonito. Eu gosto de nomes que terminam com 'ia'... Lia, Lidia, Julia, Maria, Lívia... Sofia. Sofia. Sofia." Eu não sei por que havia gostado tanto desse nome. Sofia. Eu não conhecia ninguém com esse nome, nem muitos personagens de filmes, mas é um nome lindo. "Sofia" pensei. "Esse é meu novo nome."

Metamorfose Cor-de-RosaOnde histórias criam vida. Descubra agora