Choque

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Lembro-me como se fosse hoje, do espanto, do choro, do desespero pela parte de todos. Acho que o que mais custou ao inicio foi achar uma maneira de reagir. Será que ao chorar mostro o meu lado fraco? Não, eu nunca quis mostrar o meu lado fraco a ninguém, mas foi aí que eu me lembrei de uma frase dita por um famoso qualquer "nós não choramos por sermos fracos, mas sim por cansar de sermos fortes". Chorei, chorei demais. O choque da noticia não permitiu logo que as lágrimas se soltassem, mas assim que fiquei sozinha não as consegui conter. Cheguei da escola cheia de mochilas, como costume, abri a porta de  casa e estavam pessoas a mais na minha sala, tios e tias, amigos dos meus pais e até mesmo pessoas que nunca tinha visto (amigas do trabalho da minha mãe com certeza). 

Todos a volta da minha mãe, por momentos até pensei que fosse o aniversário de alguém, mas não. Lembro-me perfeitamente das caras de desespero a olhar para mim como se não soubessem o que fazer comigo. Dei mais um passo, e consegui ver a minha mãe, estava de cabeça baixa de modo a tapar a cara. Tentei aproximar-me dela mas depressa a minha tia me puxou para a cozinha. O que se está a passar? "Querida, a tua mãe não está em condições de falar contigo. De todo não queria ser eu a dizer-te isto, alias, ninguém gosta de dizer estas coisas... o teu pai querida... o teu pai hoje ia para o trabalho e.. foi muito depressa, não se sabe como nem o porque mas... como hei de dizer? Ele ia com demasiada velocidade, os médicos dizem que se fosse apenas um pouco mais devagar ele tinha sobrevivido mas.." Sobrevivido? Como assim, eu nem a deixei acabar de falar, levantei-me e fechei-me no quarto.

 Quem culpar? Eu? A minha mãe? O meu pai? O homem com quem ele chocou? A culpa era de todos. Nessa manhã os meus pais discutiram a minha custa, porque não sabiam quem me ia levar a escola, por isso o meu pai saiu de casa chateado. Teria sido minha culpa por ter causado a discussão? Da minha mãe por ter-lhe dito coisas que não devia? Dele por ter saído de casa assim? Ou do homem que ia com demasiada velocidade? Foi de todos. Tudo nesse dia causou esse acidente, é como o efeito borboleta "o bater de asas de uma Borboleta aqui pode causar um furacão do outro lado do mundo". Mas porque motivo teria uma borboleta de causar a morte do meu pai?

Senti-me vazia como nunca, já sabia em quem meter as culpas. A culpa era da minha mãe, via-se de longe, nem coragem teve para falar comigo e contar o que se passou, era uma cobarde. Incrível, desde esse dia não quis falar mais com ela, passado uns tempos decidi ir viver com a minha tia Beatriz. Foi uma mudança complicada, ao principio foi difícil de adaptar, mas toda a gente pensou que seria o melhor para mim visto que a minha mãe "não tinha condições para ficar comigo."

Na escola toda a gente comentava o sucedido, não era uma cidade muito grande, as noticias circulavam depressa. Eu não queria que tivessem pena de mim, fazia-me de forte e sempre que alguém falava comigo sobre o assunto eu dizia "ah, são coisas que acontecem!". Parvoíce minha. Afectava-me demasiado o facto de nunca mais poder ver o meu pai, embora eu sempre tivesse tido uma relação bem mais chegada com a minha mãe, nunca iria de deixar de doer de uma maneira inexplicável. 

Eu não gostava muito da comida que a minha tia fazia, definitivamente um dos dotes dela não era a culinária. Ela era cabeleireira, tinha um salãozinho na baixa da cidade e o meu tio era padeiro por isso muitas vezes quando o jantar não me agradava fazia uma sandes e ia para o quarto comer as escondidas. As pessoas da escola achavam estranho eu viver com os meus tios, mas eu não queria viver com a minha mãe e tinha a certeza que ela não queria viver comigo. Ela afastou-se de toda a família, fechava-se em casa e chegava até a não dar noticias durante meses! Despediu-se do trabalho e nem sei como tinha dinheiro para se alimentar. A ultima vez que a vi foi na mercearia perto da biblioteca municipal. Tinha um livro da escola para entregar e a minha tia pediu-me para ir comprar cenouras para fazer sopa para o jantar. Não me parecia ela ao primeiro olhar, magra, a cara parecia negra, olhos esbugalhados e cansados e por baixo umas grandes olheiras. Antes usava sempre roupas caras e de marca, não a reconheci naqueles trapos velhos. Estava a comprar limão e álcool. Foi nesse momento, nesse preciso momento que eu percebi. Eu também tinha perdido a minha mãe. 

Lembra-teWhere stories live. Discover now