I - O Artista

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Não consigo precisar com certeza o momento em que percebi que alguma coisa estava errada.
   Algo na maneira como ela falava? Como ela olhava para mim, com aqueles olhos azuis enormes?
   Foi gradual. Discutíamos mais, por motivos mais fúteis; ela já não agradecia quando eu lhe comprava roupas e presentes; os jantares eram sempre mais silenciosos; e eu não confiava no vizinho do andar de cima, na maneira como ele olhava para ela, e na maneira como, eu sabia, ela retribuía os olhares discretos. Não que eu a perca de vista muitas vezes. A nossa casa é pequena, e o facto de, ainda por cima, trabalharmos juntos, faz com que passemos a maior parte do nosso tempo um com o outro. Mas aqueles olhares com o vizinho... e a distância na sua voz... a suspeita instalara-se, e eu sabia que não havia nada que eu pudesse fazer. Queria confrontá-la, mas faltavam-me as palavras sempre que tentava puxar o assunto.
   Conhecemo-nos numa loja na qual reparei por acaso, camuflada no meio de um enorme centro comercial. Eu acabara de sair da universidade, diga-se de passagem, não com muitos louvores. Sempre fui do tipo artístico, e só seguira o curso de gestão e contabilidade para agradar o meu pai. Não que eu sentisse essa necessidade. Aquele homem só era meu pai do ponto de vista biológico e na certidão de nascimento; nunca nada fez para eu o considerar mais do que isso. No entanto, na altura, ele tinha-me imposto um ultimato: se eu insistisse em ir para a escola de artes, saía de casa.
   - Não vou sustentar um artista de rua qualquer que vai acabar a tocar viola num beco qualquer! - Gritara ele, no seu vozeirão, intimidando com o seu duplo queixo e os olhos faiscantes. - Ou segues um curso como deve de ser ou pões-te daqui para fora.
   Que podia eu fazer, um jovem com mais borbulhas do que dinheiro? Gestão seja. Mas correra mal, tal como eu previra desde o primeiro dia que lá pusera os pés. No entanto, tinha conseguido poupar algum dinheiro ao longo desses anos, trabalhando num restaurante que possuía mais clientes do que efetivamente merecia, e decidira usar essas poupanças para investir no que, de facto, queria fazer da vida. Aluguei um pequeno estúdio, onde expus os meus quadros, e ofereci os meus serviços musicais e animadores para trabalhar em festas de aniversário, casamentos, eventos variados. Encontrava-me, assim, naquela loja para comprar aguarelas, visto que as minhas tinham acabado ontem, esbatidas na tela em que estava a trabalhar. Ou será que queria comprar chapéus de festa, para os cinco anos do David para o qual tinha sido contratado à última da hora? Gostava de crianças, e divertia-me o ar extasiado delas quando eu fazia truques de magia, tirando-lhes a carta que elas tinham escolhido de detrás da orelha, ou lhes pintava a cara de coelho, princesa ou pirata. Bem, de qualquer maneira, entrei na loja. Parecia uma daquelas lojas de antiguidades, que vendiam um  bocado de tudo, desde loiças e serviços de chá vitorianos a reparações rápidas (e duvidosas) de telemóveis. Olhei em volta: havia móveis e candelabros expostos nas vitrinas, uma zona dedicada a selos, carimbos e material escolar, diversos tecidos para cortinas e toalhas, livros tão poeirentos que tive medo que, se lhes pegasse, se iriam desfazer.
   Não estava sozinho. O dono estava preguiçosamente sentado atrás do balcão enquanto lia o jornal.
   E ela ali, num dos corredores, perscrutando todos os objetos expostos com os seus  olhos azuis.
   Não sei o que me chamou mais a atenção. Talvez esses mesmos olhos, tão brilhantes, que se cruzaram com os meus. Ou então os caracóis que lhe escorriam pelos ombros. Ou até mesmo o vestido vermelho, que ainda hoje adoro vê-la com ele posto. Só sei que soube imediatamente que a queria conhecer. Tinha de a conhecer. Até me esqueci de comprar as aguarelas. Ou talvez fossem os chapéus de festa.
   "Talvez me tenha precipitado em convidá-la para vir viver comigo" pensei, suspirando, enquanto me relembrava desse nosso primeiro encontro e de como tinha sido uma ligação à primeira vista. Mariana, chamava-se. Com o passar do tempo, percebi que tínhamos muito em comum, incluindo a vertente artística. Ela nunca fora para a universidade (obviamente não tivera um pai como o meu) e mostrava-se entusiasmadíssima quando eu lhe contava do meu estúdio, dos meus planos. Era boa ouvinte, e passávamos tardes inteiras a conversar, sobre os nossos problemas, sobre os nossos pais, as nossas ideias para o futuro. Aquelas tardes eram a minha escapatória. Contava-lhe tudo, desabafando os meus problemas. Quando um quadro não saía como eu queria, quando havia um período mais conturbado financeiramente em que parecia não haver festas nem casamentos, quando simplesmente acordava de mau humor. E, apesar de ela, por vezes, não ter as palavras certas para me animar, só o facto de ela estar ali, a sorrir e olhar para mim, fazia-me sentir melhor.
   Parecera natural, na altura, que ela viesse morar comigo. O meu apartamento era por cima do estúdio, e apesar de ser pequeno, havia espaço para mais um. E nos primeiros tempos tudo correu bem. Mariana começou a trabalhar comigo. Não tocava nenhum instrumento, mas tinha muito jeito para crianças, que a adoravam e desatavam a rir com o que ela dizia para as divertir. O seu maior sucesso foi quando o filho dos nossos vizinhos de cima fez sete anos e contrataram-nos para animar a sua festa. Nunca tínhamos sido tão aplaudidos por um grupo de miúdos, cheios de balões e bolo. A ligação natural que eu e Mariana sempre partilhámos tornava-se óbvia quando estávamos em palco. Os nossos sketchs cómicos faziam os miúdos delirar, e nem nos tínhamos de esforçar muito para os fazer rir. E eu olhava para ele, embevecido. Amava-a. Que sorte que eu tinha de a ter encontrado, naquele dia, naquele corredor.
   Mas então, porque é que eu continuava com aquela sensação de mal - estar.
   Sabia que a devia confrontar, expor as minhas dúvidas, as minhas suspeitas. Mas tinha medo da resposta. Tinha medo do que ela diria. Espreitei cautelosamente para a sala. Lá estava ela, sentada no sofá. Estava de costas, e eu não conseguia ver nem ouvir o que ela estava a fazer. Mariana sempre foi assim, silenciosa. Por vezes nem me apercebo da sua presença. Continuei a olhar para ela, para os caracóis loiros. Não, era de certeza fruto da minha imaginação. Mariana nunca me faria tal coisa. Algo tão angelical como ela jamais me trairia cobardemente com o vizinho do andar de cima. Era como sugerir que Madre Teresa de Calcutá geria clandestinamente um quartel de droga. Absurdo.
   E, no entanto...
   - Querida - disse, tentando soar descontraído, tentando que o bichinho da incerteza que me corroía não se notasse também na voz, para além das ações. - Acabou o açúcar. Vou ao vizinho pedir um bocado, pode ser?
   Mariana respondeu, sem se virar:
   - Para que precisas de açúcar?
   "Ela sabe. Sabe que isto é uma desculpa esfarrapada." Claro que sabia. Quem é que ia pedir açúcar aos vizinhos, hoje em dia? Alguém do século passado que tivesse viajado no tempo, talvez. Ou então alguém que não tinha coragem de enfrentar a própria namorada e ia procurar sorrateiramente a culpa nos olhos do vizinho.
   - Estava a pensar fazer um bolo. - Respondi, sorrindo, um sorriso tão falso que até me doeu. - Depois deixo-te provar um bocadinho.
   Mariana não disse mais nada, absorta nos seus pensamentos, provavelmente. Às vezes gostava de saber o que vai na cabeça dela. Sinto que sou sempre eu a queixar-me, a falar-lhe dos meus problemas e sonhos, a comentar o filme que vimos ou a notícia escandalosa na televisão. Claro, ela ri-se, concorda, acena com a cabeça, ouve, julga; mas nunca parece ter a iniciativa de fazer um comentário próprio. Como se a minha opinião omnisciente bastasse pelos dois. Ou talvez até tenha a sua opinião, mas não a queira partilhar comigo. Talvez a partilhe com o vizinho...
   Saí de casa, enjoado com tais pensamentos, e subi o lance de escadas que nos separava do andar de cima, onde a família Evans (como o tapete de entrada anunciava, perfeitamente cosido a castanho e branco) morava num apartamento igual ao nosso, como constatara quando eu e Mariana tínhamos ido animar a festa de sete anos do filho mais pequeno. Parei à frente do tapete, indeciso se levar aquilo avante ou não. "Eles podem nem estar em casa", tentei-me dissuadir. Mas as vozes do outro lado da porta desmoronaram a minha patética justificação interior para não bater à porta.
   Fi-lo.
   Poucos segundos depois, a porta abriu-se.
   O nosso vizinho olhou para mim. Era um homem alto, bem constituído, com olhos do mesmo azul que Mariana por trás de uns óculos retangulares, de armação preta, como o seu cabelo. Estava vestido com uma camisa aprumadamente abotoada e umas calças que combinavam com os óculos e o bronze inexplicável, visto estarmos em Novembro. Tudo nele era irritantemente harmónico, como aqueles manequins de loja ou modelos das revistas. Contrastava com o meu cabelo demasiado espetado e pele demasiado oleosa. Apercebi-me de repente que ainda estava de chinelos, e arrependi-me de já não fazer a barba há uns dias. Ao lado daquele imaculado homem de negócios que tinha uma família e provavelmente um carro desportivo e uma cota mensal no ginásio, eu devia parecer um sem abrigo que vivia debaixo da ponte e não debaixo do seu apartamento. Não me espantava se Mariana de facto o preferisse a ele.
   - Hum... boa tarde? - Perguntou o Sr. Evans, surpreendido por me ver. O nosso único contacto eram bons dias esporádicos de manhã, ocasionais encontros quando íamos buscar o correio e quando me tinham contratado para a festa do filho mais novo. Este apareceu nesse momento, espreitando por trás do pai.
   - Mário! - Guinchou ele. - Vieste aqui para a minha festa de novo?! Estás... - o miúdo começou a contar pelos dedos - 10 meses adiantado, mas não faz mal, ninguém se importa. Ainda tenho o balão que me deste. - E rematou, com um sorriso desdentado: - Trouxeste a Mariana?
   - Não, amigo. - Ri-me. - Ela ficou em casa, mas tenho a certeza que ela também tem saudades tuas! Infelizmente, não estou aqui para o teu aniversário, precisava de falar com o teu pai.
   - Oh. Queres um carro novo? O meu pai vende carros. No outro dia fui à empresa dele e havia lá um carro vermelho ENORME. E outro azul mesmo pequeno. Ei, não são vocês palhaços que se conseguem enfiar, tipo, MIL dentro de um carro minúsculo?!
   - Tim - disse o Sr. Evans, sorrindo. - Porque é que não vais com a mãe acabar de ver o filme e esperas lá por mim até eu acabar de falar com o Mário?
   - Tudo bem. - Respondeu Tim, obviamente a contragosto. Fiquei aliviado por o pai o mandar embora. Este não era o tipo de conversa que se tivesse à frente dos filhos. Pensei na Sra. Evans, na sala, a ver o tal filme. Será que ela também suspeitava de algo, como eu? Como reagiria se fosse verdade?
   - Crianças. - O Sr. Evans interrompeu-me do meu devaneio. - São tão inocentes, tão fáceis de contentar. Não lhe consigo agradecer o suficiente pela festa que proporcionou ao Tim. Já passaram dois meses e ele ainda não se calou com o seu truque de mágia, como é que conseguiram acertar na carta! - Riu-se.
   - Bem... é o nosso trabalho. - Respondi, constrangido. Como é que ele podia agir como se não tivesse acontecido nada? Se calhar devia ter trazido Mariana comigo. Conseguiria ele manter a postura à frente dela?
   - Nosso? Ah, sim, claro. Mande de novo os meus agradecimentos a Mariana, também. - Sorriu.
   - Por falar em Mariana... sabe, era disso que eu queria falar consigo.
   - Comigo? Claro, se eu puder ajudar. O que se passa?
   "Que sonso." Pensei, começando a sentir a raiva a ferver dentro de mim. Eu tinha mau génio: Mariana dizia-mo sempre. Quando sentisse que ia perder a cabeça, devia fechar os olhos e contar até 10. Ou 20, se a situação fosse particularmente enervante.
   Naquele momento, precisava de contar até 100.
   - Talvez queira fechar a porta. - Disse, lentamente. O Sr. Evans estranhou o pedido, mas assim fez, curioso. - Bem, sabe como é... a questão é esta. - Apercebi-me que não fazia ideia de como abordar o assunto. Não podia simplesmente atirar para o ar "Eu acho que o senhor anda metido com a minha namorada."
   Ou podia?
   - Eu acho que o senhor anda metido com a Mariana.
   O Sr. Evans arregalou os olhos, que pareceram ainda maiores devido aos óculos.
   - Desculpe? - Perguntou, alguns atónitos segundos depois. Era bom ator.
   - Não fui suficientemente claro?
   - Eu... desculpe, Mário, mas não faço a mínima ideia do que está a falar. Metido com a Mariana?! Que acusação é essa? - O choque e a surpresa pareciam estar a começar a dar lugar a indignação. Encenada, claro.
   - Oh, não se faça de desentendido! - Cuspi. - Não sei há quanto tempo dura, mas eu sei. Acha que eu não reparo, a maneira como olha para ela?
   - Eu... Mário, honestamente, não está a fazer sentido nenhum. Está a ouvir o que está a dizer? Não estou minimamente interessado em Mariana. Claro que olho para ela, quem não olha? Além de extremamente bonita, não é muito comum...
   - Como é que se atreve?! - Explodi. Os caracóis loiros de Mariana, a sua figura, as feições perfeitamente desenhadas, eram minhas. Só minhas. Que direito tinha ele de as admirar, e ainda por cima admiti-lo assim. - Dizer isso assim, sem vergonha, à minha frente, com a sua mulher a poucos metros?!
   - Juro, Mário, que não estou a perceber do que está a falar.
   - Pois eu acho que o senhor sabe exatamente do que estou a falar.- Se antes tinha dúvidas, agora tinham-se dissipado. - Digo-lhe isto: volta a aproximar-se de Mariana, volta a mencioná-la, volta a tocar nela... e vou-lhe mostrar que os palhaços são capazes de muito mais para além de pintar caras e adivinhar cartas. - Sibilei. - Tem sorte que não vou imediatamente contar tudo à sua mulher. Isso é lá consigo e com a sua consciência. Mas a Mariana é a minha namorada. Só minha. E não permitirei que essa vossa relação clandestina da treta continue por mais um segundo que seja.
   O Sr. Evans olhou para mim, em silêncio. Melhor assim: não havia nada que ele pudesse dizer que melhorasse a situação. Cerrei os punhos, imaginando a satisfação que me daria esmurrá-lo no nariz, mesmo no meio dos óculos, e vê-los partirem-se, enquanto ele cambaleava contra a porta...
   - Você é louco. - Anunciou ele, antes de abrir a porta, entrar em casa e fechá-la na minha cara.
   "Isso. Foge, seu cobarde." Pensei, sentindo o sangue ferver-me nas veias, enquanto descia furiosamente as escadas.
   Eu sabia. Sabia. Aquele brilho nos olhos dele, a maneira como fugira. A satisfação de ter razão e de não estar, no final de contas, a perder a sanidade, rapidamente deu lugar à realização que Mariana tinha tanta culpa quanto o vizinho de cima.
   O meu anjo. A minha musa. O meu presente do destino no corredor daquela loja. Entrei em casa com a cabeça num turbilhão de mágoa, ira e uma tristeza avassaladora. Tudo bem que eu não vendia carros nem era bronzeado, mas o que eu e Mariana partilhávamos era real. Ou achava eu que era.
   Como pudera ela fazer-me isto.
   Espreitei para a sala. Ela estava no mesmo sítio, silenciosa como sempre, talvez a dormir.
   Se por um lado queria confrontá-la, atirar-lhe a verdade à cara, exigir uma resposta para o "Porquê?" que me estava a esmagar, por outro sentia que me ia desfazer em lágrimas. Parei à entrada da sala, imóvel. Não estava lúcido nem racional o suficiente para ter uma conversa daquelas. Se uma parte de mim só queria pôr Mariana fora de casa, a outra não conseguia imaginar aquele apartamento sem ela.
   - Mário? Está tudo bem, querido? - Perguntou-me ela, apercebendo-se da minha presença. Afinal não estava a dormir. - O vizinho emprestou-te o açúcar?
   - Dói-me a cabeça. Acho que vou dormir mais cedo, hoje. Janta sem mim. - Respondi mecanicamente. Não me lembrava de formular as palavras na minha cabeça, simplesmente saíram, como se a parte sensata do meu cérebro me estivesse a guiar, a avisar para sair dali e pensar no assunto antes de dizer ou fazer algo que me fosse arrepender. Fui até ao quarto e deitei-me na cama, ficando a olhar para o teto durante muito tempo antes de me aperceber que estava, de facto, exausto, e cair num sono profundo.

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