II - A Árvore

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   Aquele sempre tinha sido o meu sítio preferido. Talvez por ser tão alto, tão longe do resto do mundo, como se todos os nossos problemas ficassem presos ao chão, incapazes de trepar aqueles galhos e tronco rugoso até ao topo daquela árvore. Claro que, quando era pequena, parecia mais alto do que agora, apercebia-me, realmente o era. Mas continuava a ser o meu esconderijo, o meu pedaço de paz solene que ninguém nem nada me podia tirar. Da primeira vez que tentara subir, nem me lembrava que idade tinha, pousara mal o pé e caíra de cabeça. Não me lembro de alguma vez me ter magoado tanto. A minha mãe foi ter comigo, enquanto eu chorava aos altos berros, olhou para mim e disse:
- Volta a subir. Agora. Se não o fizeres, vais ter demasiado medo para o voltares a fazer.
Pegou em mim ao colo e posicionou-me de novo no galho em questão. Eu achei que ela estava maluca, mas continuei a subir, com a cabeça a doer e o coração disparado.
E ainda bem que o fiz.

   Era aí que eu estava sentada. Fechei os olhos, inspirando o cheiro de relva e de natureza, sentindo a madeira dura do galho onde estava empoleirada contra as minhas pernas. Se me concentrasse muito, quase que conseguia também sentir o cheiro de tarte de limão, vindo da cozinha, aquela que só a minha avó conseguia fazer.

   A vida corria-me bem. Era feliz. Principalmente naqueles quinze dias de verão, em que os meus pais tinham de ir trabalhar ("O dever chama!" dizia sempre o meu pai, ajeitando a gravata) e me deixavam a mim e à minha irmã em casa dos meus avós, com 10 primos, um jardim gigante e a promessa de mais um Verão repleto de praia, jogos e tartes de limão. E assim era. Os meus avós eram pessoas simples, dedicadas à família, à música e à horta. Tinham um piano no meio da sala que nos deixavam tocar, na condição de não sujarmos as teclas, e um acordeão no sótão. Além disso, tinham um amor enorme para oferecer em 12 partes iguais pelos 12 netos hiperativos. Quer dizer, isto é uma generalização; nunca fui hiperativa. Enquanto que a minha irmã e os nossos primos mais novos passavam a tarde a atirar-se para a lama e fingir que eram cowboys entre os arbustos, eu preferia ir ler para cima desta árvore, onde me encontrava agora, ou tocar piano com o meu avô, ou ir ver os colares e pulseiras que a minha avó tinha e fingir que possuía uma loja ("8.9€ pela pulseira azul, minha senhora. Se também levar aquele par de brincos faço-lhe um desconto!"). Tal como já mencionei, os meus avós eram pessoas simples, por isso a quantidade de jóias naquela casa era limitada, mas suficiente para o stock da minha loja imaginária. Principalmente os colares. Adorava-os. Aquele de pérolas, que a minha avó usava sempre nos casamentos e batizados; aquele doirado com um pingente à frente; aquele de prata com uma cruz; e, o meu preferido, aquele todo entrelaçado, azul escuro, com uma pedra brilhante à frente que ficava bem com tudo. Era sempre a minha peça de exposição principal, reluzindo na vitrina imaginária. Quando convencia a minha irmã e primos a ir fazer compras à minha loja e eles perguntavam o preço do colar, eu dava sempre um preço exorbitante, dando implicitamente a entender que aquele colar não ia sair dali. Era demasiado precioso, demasiado meu.
Uma tarde, os avós convidaram uns amigos deles da aldeia ao lado que já não viam há muito tempo para irem lá lanchar com os respetivos netos. Eu estava no quarto da minha avó, a expor, como sempre, todos os seus acessórios pela cómoda (estava indecisa se os brincos deviam ficar ao lado dos ganchos ou não) quando um rapaz que eu nunca vira antes entrou, acompanhado pela minha avó.
- Querida, este é o James. É o menino que te falei, que nos vinha hoje visitar! É da tua idade, achei que se podiam dar bem. Porque é que não lhe explicas o que estás a fazer?
Olhei para ele, desconfiada. O cabelo ruivo era quase vermelho, despenteadíssimo, e lembro-me que fiquei muito admirada por ele ter não só a cara, como os braços cheios de sarda. Pensei se ele teria varicela. Isso não era contagioso? Os seus olhos escuros estavam a fitar as jóias expostas em linha, e quando ele sorriu viu-se claramente a falta de um dos dentes da frente.
Tenho de admitir, não estava muito entusiasmada por ter de partilhar a minha loja com este miúdo estranho. Mas a minha avó deu meia volta, certamente para não deixar os seus amigos à espera, não me deixando muita escolha.
- O que é que estás a fazer? - Perguntou-me James, aproximando-se da cómoda, enquanto analisava tudo.
- Uma loja. - Expliquei, após um segundo de hesitação.
- A sério? E posso trabalhar na loja também?
- Depende.
- Do quê?
Nem eu própria sabia bem, mas de uma coisa tinha a certeza: não era qualquer um que por ali entrasse que podia ter tal honra. Olhei para todas as peças expostas, e disse-lhe:
- Se adivinhares qual destas jóias todas é a mais valiosa, podes trabalhar. Como assistente. Só às quartas e sextas.
James percorreu a cómoda com os olhos, fixando-se nas argolas de oiro (falso, mas os clientes não precisavam de saber), no lenço bordado e no conjunto de anéis de todas as cores e tamanhos.
Por fim, pegou no colar azul escuro entrelaçado.
- Não sei se é o mais valioso, mas é sem dúvida o mais bonito.
Sorri. - Estás contratado.
Afinal, até gostava daquele miúdo com varicela.

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