As últimas doses de morfina

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Os primeiros fracos raios de sol matinais começam a entrar pelas fissuras da parte superior da parede a minha frente. A geladeira onde meus pés encostam parece não estar ligada pelo absoluto silêncio que toma o último cômodo desta casa. O chão que me sento permanece frio como esperado tendo em vista a chuva que deu as caras timidamente pela madrugada e atenuou levemente a temperatura. Os meus sentidos perdem gradualmente a nitidez enquanto este vão estreito guarda as minhas últimas preces de desistência e o fogão apoia as minhas costas antes de meu corpo esmorecer e tombar para o lado. Há louças sujas em excesso na pia a minha esquerda, o filtro ao lado estava vazio e o micro-ondas preenchido de gordura. A situação neste lugar é deplorável, como se estivesse abandonado há semanas, como se não houvesse vida naquele pequeno espaço durante várias madrugadas. E de fato não tinha, desculpe-me mas terei que discordar da sua definição de vida. Este chão vermelho, que disfarça o quão encharcado está com o sangue que as minhas veias e artérias expulsam com veemência, escoram apenas o desfalecimento do meu corpo, não da minha alma. As últimas doses de morfina se perderam entre as minhas entranhas no mais tardar da noite e aliviaram um pouco a agonia deste último momento. Eu posso gritar, se ainda tivesse força, e ninguém me ouviria. Não há pessoas ao meu redor. Com o tempo, todas as pessoas sumiram uma a uma. O padecimento dos meus sentidos ao menos me trás a mais viva lembrança de um tempo onde o fardo da vida era tão mais suportável que a frieza da morte. Olha como ela está linda, a sua tiara magenta com uma delicada faixa do lado esquerdo contorna seus fios loiros extremamente brilhantes que reluz os raios tênues que penetram as fisgas. Ela está cordial e exala a simpatia que afaga o meu solene coração. Já conseguia ouvir suas passadas pelo extenso corredor para se despedir da sua pequena cadela que passou a dormir no quintal nos últimos dias. A sinuosidade em seu pequeno corpo é a minha lembrança mais aconchegante. As pontas do seus sapatos dobram quando ela se esforça para alcançar a pequena janela para se despedir do animal. Ao dar seus últimos cumprimentos ao nosso pequeno hóspede, compara sua altura logo ao lado da porta do meu quarto, ansiosa para alcançar o um metro e vinte centímetros. O pequeno garoto com franjas enormes castanhas que caem sobre as suas sobrancelhas abre lentamente a porta do quarto para se despedir de mim antes de partir para a escola onde acabara de voltar as aulas. Sem a mesma delicadeza que seu irmão mais velho, a pequena menina dos cabelos de luz corre com fugacidade e pula na cama, dando-me um pequeno mas agradável susto nas primeiras horas do amanhecer, enquanto escuto a mãe deles clamando-os em tom de imponência relevando o pequeno atraso de sempre. Suas imagens esmaecem no vento e trazem-me de volta a pequena janela oclusa e porta do quarto trancada, as vozes agudas e tênuas dão espaço para o silêncio do fim da fria madrugada, a marca de caneta esferográfica na parede nunca passara de um metro e dez. Neste momento, nem a minha visão levemente míope consegue focar a geladeira que está a menos de um metro. O meu coração acelera como se ascendesse a ansiedade que a morfina passara a noite atenuando. Ah, ansiedade, a minha velha companheira dos dias turbulentos, colocou-me aqui sentado encharcado pela abertura profunda em meu abdômen, sem força nem para segurar este canivete extremamente afiado na minha mão direita. Não há forças sequer para tremer, entre algumas dezenas de segundos a minha visão clareia e desfoca ainda mais. Eu posso contar-lhes o que me trouxe a este chão para preencher este vácuo em seus corações vis com o entretenimento que a minha história trará ou perecer abraçado a minha covarde desistência, carregando os mais inescrupulosos julgamentos de suas mentes vazias e deixar-lhes sem o conto das minhas lástimas para afagar suas autoestimas dilaceradas, emocionais defasados e desejo voraz de eclipsar seus fracassos com uma distração desprezível que estes livros lhe trazem. A cada vez que os meus olhos piscam, o tempo que se mantem fechado parece se estender, o sono me puxa pelos pés enquanto uma luz forte se expande pelo meu campo de visão. Eles estão indo para a escola, caro leitor, o modo como ele segura a mão da pequena irmã dá-me os últimos suspiros de felicidade. Ela já alcança o interruptor da sala e desliga a luz do cômodo antes de sair correndo para o banco esquerdo da parte de trás do carro enquanto resmunga questionando o porquê não pode ir na frente como o irmão ao menos um dia. A garagem se fecha gradualmente e eles partem deixando apenas a tiara magenta que caíra sem perceber quando ela pulou na minha cama ao amanhecer. Suas vozes ganham o silêncio novamente enquanto eu espero aquele carro voltar algum dia. Definitivamente, o caminho até aqui começou antes daquele carro partir e o motivo dos meus sentidos estarem partindo na mesma gradualidade com que o sol toma o céu não dá para ser escrito em apenas um capítulo de orações pobres de retórica. 

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