O dia 11 de outubro não tem nada de especial. Não é feriado, não é data cívica nem religiosa, muito menos algum fato significativo se deu nesse dia, pois nunca em meus 48 anos de vida eu tinha reparado nele. Não foi nesse dia que transei pela primeira vez, nem foi nessa data que conheci a namorada que um dia veio a se tornar a minha esposa, num casamento que não se realizou nessa data, também.
E esse dia 11 de outubro não teria motivo nenhum para significar algo, até porque era uma segunda-feira ordinária, como outra qualquer, chuvosa e de trabalho. Levantei-me no horário habitual, ou seja, muito cedo, tomei um banho, coloquei o meu terno, tomei o café que minha esposa havia preparado, dei um beijo nela, nos meu dois filhos que tinham acabado de acordar para irem à faculdade, entrei na garagem, liguei o carro e parti.
O meu dia funcionava praticamente todo ele no automático, desde a hora que eu acordava até a hora de dormir. Comia porque precisava comer, trabalhava porque precisava trabalhar, eu já nem pensava no que fazia, muito menos o motivo pelo qual eu fazia. Apenas fazia.
E, como toda vida ordinária, eu tinha um emprego ordinário. Sabe aquela pessoa que tem um cargo num banco, que trabalha nele há muito tempo, por isso domina todas as situações que possam existir, mas que por outro lado não tem ambição alguma em alcançar algo maior, uma vez que o que já conquistou até agora é o suficiente? Este sou eu.
A distância entre o lugar que eu fico durante o tempo que não estou trabalhando (conhecido como casa) e o lugar que eu fico enquanto não estou em casa (conhecido como trabalho) é geograficamente curto, dois ou três quilômetros, no máximo, mas nessa São Paulo dos anos 2000, onde a cada dia milhões de novos carros brotam do nada e a porra do transporte coletivo definha, o tempo é relativo. Relativamente demorado pra cacete.
E quando chove ainda? Daí mesmo que quem não costuma usar o carro resolve usar. Ligo o rádio para saber as notícias da manhã e as condições de tráfego. Acidente na 9 de Julho, motoqueiro atropelado na Avenida do Estado, colisão de caminhões na Marginal, inundação bloqueando uma faixa da Aricanduva. Fora os buracos, esses que surgem em progressões geométricas.
Como alguém pode exigir algum ânimo de uma pessoa que vive isso cinco dias por semana? De alguém cuja vida se divide em apenas quatro ambientes: a mesa de trabalho, o banco do carro, o sofá da televisão e a cama.
E o pior ainda é que a cama é apenas pra dormir mesmo, porque sexo que é bom eu já nem me lembro como funciona. Lembro do meu frescor da juventude, quando nós éramos recém casados, que trepávamos em todos os cantos, a todos os momentos. Éramos insaciáveis e acreditávamos que o fogo iria durar para sempre, mas depois de um certo tempo, nem Viagra salva e nem lembro qual foi a minha última trepada que não tenha sido um papai e mamãe de cinco minutos. Tira a roupa, mete, fode, goza e dorme.
Desço rampa, desço outra, rodo até encontrar um lugar vazio, pego minha pasta, caminho até a recepção, passo meu crachá para liberar a entrada, espero o elevador, continuo esperando o elevador, me espremo para entrar nele, aperto o botão do oitavo andar, ele pára no primeiro subsolo e entra gente, ele pára no térreo e entra gente, ele pára no primeiro e desce gente, ele pára no segundo e desce gente, ele pára no terceiro e desce gente, ele pára no quarto e desce gente, ele pára no quinto e desce gente, ele pára no sexto e desce gente, ele pára no sétimo e desce gente, ele para no oitavo e desço eu, cumprimento a recepcionista, caminho por entre as baias até a minha, a quarta do terceiro corredor à direita, tiro o paletó, sento na cadeira, coloco minha pasta no canto, ligo o computador e desligo a minha vida. Não dá, percebo que ela já está desligada. A vida, não o computador, esse já ligou.
Não me diferencio muito do personagem do Charlie Chaplin em Tempos Modernos, com a única diferença que uso um terno no lugar de um macacão e uma HP no lugar de uma chave de boca.
Olho no calendário e vejo que ele aponta o 11 de outubro. O que é o 11 de outubro, senão a véspera do dia das crianças. Sei também que é um dia santo, alguma coisa a ver com Nossa Senhora, mas eu não sou católico faz tempo e, como meus filhos não são mais crianças, então não é nada mais do que a véspera de um feriado, que dessa vez caiu numa segunda-feira e está chovendo.
Na hora do almoço, alguma coisa passada da uma da tarde, vou até algum restaurante que seja perto e não esteja tão lotado. Vou não porque eu quero, mas tem uma hora que teu estômago pede para que você se levante e tome uma atitude, pois já diz o ditado que saco vazio não pára em pé, e pelo jeito nem sentado.
O pessoal na mesa comenta sobre o dia chuvoso, os planos do feriado de amanhã, o nabo que o coringão levou no final de semana e o filho da puta do dono do banco, que mesmo com o rabo cheio de dinheiro alheio, não deixou a gente emendar o feriado. Eu concordo, se bem que se não trabalhasse provavelmente passaria coçando a minha barriga gorda defronte a TV o dia todo.
Por falar em barriga, isso é outra merda da passagem dos tempos. Se não bastasse o pinto que não tem mais interesse em funcionar e os cabelos que querem cair, esse ser insiste em crescer dentro de mim, tal qual os Aliens naquele filme antigo, deformando o físico que um dia eu me orgulhei de ter. Claro que o churrasco, a cerveja e a macarronada nada têm a ver com isso, pois não é justo eu me privar de um dos poucos prazeres que ainda possuo.
E por falar em prazeres da carne – gastronomicamente falando, claro – a única coisa que me dá prazer numa segunda é o viradinho servido em todos os restaurantes e PF's da vida.
Números, números e números. Gráficos, gráficos e gráficos. Tabelas, tabelas e tabelas. Fórmulas, fórmulas e fórmulas. Novo, salvar e fechar.
Hora de ir embora. É como pegar o filme gravado pela manhã e colocar no rewind. Desligo o computador, pego a pasta no canto, levanto da cadeira, coloco o paletó, caminho por entre as baias até a saída, a recepcionista já foi embora, espero o elevador, continuo esperando o elevador, ele pára e já está lotado, não entro, continuo esperando o elevador, me espremo para entrar nele, o botão do segundo subsolo já está apertado, ele pára no sétimo e entra mais gente, ele pára no sexto e entra mais gente, ele pára no quinto e não entra ninguém, porque já está lotado, ele pára no quarto e não entra ninguém, ele pára no terceiro e não entra ninguém, ele pára no segundo e não entra ninguém, ele não pára no primeiro, porque esses malditos sortudos podem descer pela escada, ele pára no térreo e desce gente, ele pára no primeiro subsolo e desce gente, ele pára no segundo subsolo e desço eu, passo meu crachá para liberar a saída, caminho até meu carro, coloco a pasta no banco do passageiro, saio da vaga, subo rampa, subo outra, estou na rua.
A chuva passou, e o trânsito nem está tão ruim, afinal é véspera de feriado, mas mesmo assim enche o saco dirigir até minha casa.
Paro num semáforo, estou entretido procurando alguma coisa no rádio quando ouço um estouro ao meu lado. Olho e vejo o vidro do passageiro do meu lado estourado, e uma mão puxando minha pasta. Mecanicamente, viro meu corpo para impedir e escuto outro estouro.
Agora para mim o dia 11 de outubro tem umsignificado especial, pois foi o dia em que eu morri, vítima de uma bala nacabeça em um assalto no trânsito. Mas para todas as outras pessoas, o 11 deoutubro continua sendo apenas véspera de um feriado. Um dia insignificantequalquer*