Capítulo 3

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Uma vila é como um animal colonial. Tem sistema nervoso, cabeça, ombros e pés. É uma coisa separada de todas as outras vilas ou cidades. E tem sentimentos uniformes. Não é mistério de solução fácil saber como as notícias se espalham através de uma vila. As notícias parecem correr mais depressa do que os garotos que se apressam em contá-las, mais depressa do que as mulheres que falam por cima das cercas. Antes que Kino, Juana e os outros pescadores tivessem voltado para a cabana de varas, de Kino, os nervos da cidade pulsavam e vibravam com a notícia — Kino tinha encontrado a Pérola do Mundo. Antes que garotos arquejantes pudessem proferir palavras entrecortadas, as mães sabiam de tudo. A notícia varreu as cabanas e foi quebrar-se numa onda espumante nas casas de pedra e cal. Chegou aos ouvidos do padre que caminhava no seu jardim e ele ficou com um olhar pensativo ao lembrar-se de alguns consertos que era preciso fazer na igreja. Pensou em quanto valeria a pérola. E ficou sem saber se havia batizado o filho de Kino ou até, por falar nisso, se o havia casado. A notícia chegou aos negociantes e eles olharam para as roupas de homem que não estavam tendo muita saída. A notícia chegou ao médico, o qual estava no consultório com uma mulher cuja doença era a idade, embora nem ela nem o médico quisessem reconhecer isso. E quando se apurou quem era Kino, o médico se mostrou severo e judicioso ao mesmo tempo. — Ele é meu cliente — disse o médico. — Estou tratando o filho dele de uma picada de escorpião. E os olhos do médico rolaram um pouco nas suas bolsas de banha e ele pensou em Paris. Lembrou-se do quarto em que ali vivera como um grande e opulento palácio e lembrou-se da mulher de rosto duro que vivera com ele como uma mocinha bela e boa, embora ela não fosse nenhuma dessas três coisas. O médico olhou além da sua idosa cliente e viu-se sentado num restaurante em Paris no momento em que um garçom abria uma garrafa de vinho. A notícia chegou bem cedo aos mendigos do adro da igreja e os fez rir um pouco de prazer, porque sabiam que não há ninguém que dê esmolas no mundo como um homem pobre que de repente tem um golpe de sorte. Kino encontrou a Pérola do Mundo. Na Vila, sentavam-se em pequenos escritórios os homens que compravam pérolas dos pescadores. Esperavam nas suas cadeiras até que as pérolas chegavam e aí falavam, lutavam, gritavam e ameaçavam até que chegavam ao preço mais baixo que o pescador poderia aceitar. Mas havia um preço abaixo do qual não tinham coragem de ir porque tinha havido uma vez um pescador que, no seu desespero, dera as pérolas à igreja. E, depois de feitas as compras, esses compradores ficavam sozinhos e rolavam agitadamente as pérolas nos dedos, desejando que elas fossem deles. Era porque não havia na realidade muitos compradores — o comprador era um só e ele colocava esses agentes em escritórios separados para criar uma aparência de competição. Esses homens receberam a notícia e piscaram os olhos, sentindo comichão nas pontas dos dedos, pensando que o patrão não poderia viver para sempre e que alguém teria de tomar o lugar dele. E cada qual pensava que com um pouco de capital poderia fazer um começo de vida. Gente de todas as espécies criou interesse por Kino — pessoas que tinham coisas para vender e pessoas que tinham favores a pedir. Kino tinha achado a Pérola do Mundo. A essência da pérola se misturou com a essência dos homens e então um curioso resíduo negro se precipitou. Todos os homens ficaram de repente relacionados com a pérola de Kino e a pérola de Kino passou a fazer parte dos sonhos, das especulações, das tramas, dos planos, dos futuros, dos desejos, das necessidades, das cobiças, das fomes de todos e o único obstáculo à realização de tudo isso era Kino, de modo que ele se tornou curiosamente inimigo de todos. A notícia fez subir à tona uma coisa infinitamente negra e má na vila; a destilação escura era como o escorpião ou como a fome quando se sente o cheiro de comida ou como a solidão quando o amor é negado. As bolsas de veneno da vila começaram a segregar veneno e a vila ficou repleta e inflada com a pressão desse veneno. Mas Kino e Juana não sabiam de nada disso. Desde que se sentiam felizes e exultantes, pensavam que todo o mundo participava dessa alegria. Juan Tomás e Apolonia participavam e eles também eram o mundo. À tardinha, quando o sol havia desaparecido por trás das montanhas da península para ir afundar no mar do outro lado, Kino se agachou na cabana com Juana ao seu lado. E a casinha de taipa estava cheia de vizinhos. Kino tinha na mão a grande pérola, quente e viva na sua palma. E a música da pérola se tinha fundido com a música da família, de modo que uma embelezava a outra. Os vizinhos olhavam a pérola na mão de Kino e se admiravam de que um homem pudesse ter tanta sorte. E Juan Tomás, que estava agachado à direita de Kino porque era irmão dele, perguntou: — Que é que vai fazer agora que é um homem rico? Kino olhou para a pérola e Juana baixou os olhos e ajeitou o xale para cobrir o rosto a fim de que não se visse a sua agitação. E na incandescência da pérola tomaram forma as imagens das coisas que o espírito de Kino havia examinado no passado e de que havia desistido por serem impossíveis. Viu na pérola a si mesmo e a Juana e Coyotito ajoelhados diante do altar para se casarem agora que podiam pagar. Disse calmamente: — Vamo-nos casar... na igreja. Viu na pérola como estavam vestidos — Juana com um xale estalando de novo e com uma saia nova muito comprida, por baixo da qual Kino via que ela estava calçada com sapatos. Era o que estava na pérola — o quadro que ali resplandecia. Ele também estava vestido com uma roupa branca nova e tinha um chapéu novo — não de palha, mas de um bom feltro preto — e usava também sapatos, não sandálias, mas sapatos com cordões. Mas Coyotito — era ele mesmo — estava com uma roupinha de marinheiro dos Estados Unidos e um boné de comandante como Kino tinha visto uma vez quando um iate de recreio ancorara no estuário. Tudo isso Kino viu na luzente pérola e disse: — Vamos ter roupas novas. E a música da pérola lhe soou aos ouvidos como uma banda de clarins. Depois, chegaram à bela superfície cinzenta da pérola as pequenas coisas que Kino queria: um arpão para substituir um que perdera no ano anterior, um arpão de ferro com uma argola na ponta da haste. E também — o seu espírito quase não podia suportar a emoção — um rifle — mas por que não, já que ele estava rico? E Kino viu Kino na pérola, Kino empunhando um rifle Winchester. Era um sonho muito audacioso e muito agradável. Moveu os lábios com hesitação e murmurou: — Um rifle. .. talvez um rifle... Foi o rifle que fez caírem as barreiras. Era uma impossibilidade, mas, se ele podia pensar em ter um rifle, então horizontes inteiros se escancaravam e ele podia entrar impetuosamente por eles. Dizem que os homens nunca se contentam e, quando se lhes dá alguma coisa, pedem sempre um pouco mais. Dizem ainda em justificação que é essa uma das melhores qualidades da espécie e que a tornou superior aos animais, que se contentam com o que têm. Os vizinhos, apertados e silenciosos dentro da casa, acompanhavam com movimentos de cabeça os saltos da delirante imaginação de Kino. E um homem atrás dos outros murmurou: — Um rifle. Ele vai ter um rifle. Mas a música da pérola estava cantando em triunfo no íntimo de Kino. Juana levantou a cabeça e arregalou os olhos diante da coragem e da imaginação de Kino. E uma força elétrica o animava depois que os horizontes tinham sido removidos. Na pérola, viu Coyotito sentado diante de uma carteira na escola, como Kino vira uma vez ao passar por uma porta aberta. E Coyotito estava vestido de casaco com um colarinho branco e uma gravata larga de seda. E não era só: Coyotito estava escrevendo numa grande folha de papel. Kino olhou orgulhosamente para os vizinhos. — Meu filho irá para a escola — disse ele, e os vizinhos ficaram em silêncio. Juana tomou um grande fôlego. Os olhos lhe brilharam ao olhar para Kino e ela se voltou logo para ver Coyotito nos seus braços, como para convencer-se de que isso era possível. Mas o rosto de Kino brilhava com a luz da profecia. — Meu filho vai ler e abrir os livros. Vai escrever e saber escrever. Meu filho vai fazer também contas e essas coisas nos farão livres — porque ele vai saber e por meio dele nós também saberemos. E na pérola Kino viu a si mesmo e a Juana acocorados junto ao pequeno braseiro da cabana enquanto Coyotito lia um grande livro. — Isso é o que a pérola vai fazer — disse ele. E Kino nunca dissera tantas palavras juntas em toda a sua vida. E, de repente, teve medo de ter falado. Fechou a mão sobre a pérola e apagou a luz que vinha dela. Kino estava com medo como um homem que jura sem saber. Ora, os vizinhos sabiam que tinham assistido a um verdadeiro prodígio. Sabiam que o tempo passaria a ser contado da pérola de Kino e que discutiriam o acontecimento durante muitos anos. Se essas coisas se realizassem, contariam como era o aspecto de Kino e o que ele dissera e como os seus olhos brilhavam e acrescentariam: — Era um homem transfigurado. Ganhara um grande poder e foi naquele momento que começou. Via-se que grande homem ele passara a ser desde aquele momento. Vi com estes olhos. E, se os planos de Kino dessem em nada, os mesmos vizinhos diriam: — Foi então que começou. A loucura tomou conta dele e Kino principiou a dizer coisas insensatas. Deus que nos guarde de coisas assim. Deus castigou Kino porque ele se revoltou com o jeito das coisas. Viram qual foi o resultado. E eu estava presente no momento em que ele perdeu o juízo. Kino olhou para a mão fechada e viu que estava esfolada e ferida nos lugares em que batera no portão. A noite começou a cair. Juana levantou o menino dentro do xale a fim de pendurá-lo na cintura. Foi então até ao fogo, apanhou uma brasa entre as cinzas e quebrou alguns gravetos, abanando depois o fogo para fazê-lo subir. As pequenas chamas dançavam nos rostos dos vizinhos. Estes sabiam que deviam ir tratar do jantar, mas não estavam com vontade de sair. Já era quase noite e o fogo de Juana lançava sombras nas paredes da cabana quando o rumor apareceu e passou de boca em boca. — O padre... o padre vem aí. Os homens tiraram o chapéu da cabeça e se afastaram da porta, enquanto as mulheres cobriam a cabeça com o xale e baixavam os olhos. Kino e Juan Tomás, seu irmão, se levantaram. O padre entrou — era um homem grisalho e idoso, de pele engelhada mas de olhos vivos. Considerava aquela gente como crianças e tratava a todos como crianças. — Kino — disse ele com voz mansa —, você tem o nome de um grande homem e um grande Pai da Igreja. — Disse isso como se fosse uma bênção. — O seu xará domou o deserto e adoçou o espírito de sua gente, sabia? Está nos livros. Kino olhou prontamente para a cabeça de Coyotito, que estava pendurado nos quadris de Juana. Algum dia, pensou ele, aquele menino saberia que coisas estavam nos livros e que coisas não estavam. A música tinha-se apagado então da cabeça de Kino, mas naquele momento, fraca e lenta, a melodia da manhã, a música do mal, do inimigo, se fez ouvir. E Kino olhou para os seus vizinhos a fim de ver quem havia levado aquela música. Mas o padre estava falando outra vez. — Soube que você encontrou uma grande fortuna, uma grande pérola. Kino abriu a mão e o padre teve uma exclamação ante o tamanho e a beleza da pedra. Disse então: — Espero que se tenha lembrado de agradecer, meu filho, a Quem lhe deu esse tesouro e de rezar para que possa ser orientado quanto ao futuro. Kino fez um gesto de aquiescência apaticamente e foi Juana quem falou brandamente: — Fique descansado, Padre. Nós vamos nos casar, Kino já disse. Olhou para os vizinhos pedindo confirmação e eles bateram solenemente com a cabeça. O padre disse: — É bom saber que os primeiros pensamentos que tiveram foram bons pensamentos. Deus os abençoe, meus filhos. Virou-se e saiu em passo vagaroso e o povo abriu caminho para que ele passasse. Mas a mão de Kino se fechou com força sobre a pérola e olhava em torno com desconfiança porque a cantiga má estava em seus ouvidos, lutando com estridência contra a música da pérola. Os vizinhos começaram a ir para as suas casas e Juana agachou-se ao pé do fogo e colocou a panela de barro de feijão cozido sobre as pequenas chamas. Kino chegou à porta e olhou. Como sempre, podia sentir o cheiro da fumaça de muitos fogos, ver as estrelas dentro da névoa e sentir a umidade do ar da noite, a tal ponto que cobriu o nariz. O cachorro magro se aproximou dele e sacudiu o rabo em saudação, como uma bandeira batida pelo vento. Kino baixou os olhos e não o viu. Havia partido através dos horizontes num frio e deserto mundo exterior. Sentia-se sozinho e desprotegido, e os grilos que cricrilavam, as rãs que guinchavam nas árvores e os sapos que coaxavam pareciam todos executar a melodia do mal. Kino tremeu um pouco e chegou a manta mais ao nariz. Tinha ainda na mão a pérola, fortemente fechada na palma, e sentia na pele o seu calor e a sua maciez. Atrás dele, ouvia Juana tratando das broas de milho que colocava na chapa do fogão de barro. Kino sentia às suas costas o calor e a segurança de sua família e a Cantiga da Família se elevava por trás dele como o ronronar de um gato. Naquele momento, havendo dito o que ia ser o seu futuro, criara este. Um plano é uma coisa real e as coisas projetadas são experimentadas. Um plano, depois de feito e visualizado, torna-se uma realidade ao lado de outras realidades — não podendo nunca ser destruído, mas podendo facilmente ser atacado. Desse modo, o futuro de Kino era real, mas, depois de estabelecido, outras forças se levantavam para destruí-lo, e ele, sabendo disso, tinha de preparar-se para enfrentar o ataque. E Kino sabia de outra coisa ainda: os deuses não simpatizam com os planos dos homens e não gostam do sucesso quando vem por acaso. Sabia que os deuses exercem vingança contra o homem que vence pelos seus próprios esforços. Por isso, Kino sempre tivera medo de fazer planos, mas, depois de ter feito um, não poderia mais destruí-lo. E, para enfrentar o ataque, Kino já estava criando um couro duro contra o mundo. Sondava o perigo com os olhos e com a cabeça antes que ele aparecesse. De pé na porta, viu dois homens que se aproximavam, um deles com uma lanterna que iluminava o chão e as pernas dos dois. Entraram pela abertura da cerca de varas e se dirigiram para a sua porta. Kino viu que um deles era o médico e o outro, o criado que havia falado com ele no portão naquela manhã. Os dedos esfolados da mão direita de Kino arderam quando ele viu quem era. — Não estava em casa quando apareceu hoje de manhã — disse o médico. — Mas agora, na primeira folga que tive, vim ver o menino. Kino continuou na porta, obstruindo-a, e o ódio saltou e tremeu no fundo dos seus olhos, juntamente com medo, porque centenas de anos de sujeição estavam bem profundas nele. — O menino já está quase bom — disse ele secamente. O médico sorriu, mas não houve sorriso nas bolsas enrugadas dos olhos. — Às vezes, meu amigo, a picada do escorpião tem um efeito curioso. Parece que há melhoras e, de repente, sem aviso, puff! Enrugou os lábios e fez uma pequena explosão para mostrar a pressa com que isso podia acontecer, e levou para a frente do corpo a sua maleta preta de médico porque sabia que a raça de Kino gosta dos instrumentos de qualquer profissão e confia neles. — Às vezes — continuou o médico com voz ainda mais branda — o resultado pode ser uma perna seca, um olho cego ou as costas aleijadas. Ah! Eu conheço a picada do escorpião e sei curá-la. Kino sentiu que a raiva e o ódio se dissolviam em medo. Não sabia disso, mas talvez o médico soubesse. Não podia correr o risco de lutar com a sua ignorância contra o possível conhecimento do médico. Estava na armadilha como o seu povo sempre estava e estaria até que, como ele havia dito, pudesse saber que as coisas que dizem os livros estão realmente nos livros. Não podia arriscar a vida ou a firmeza de corpo de Coyotito. Afastou-se e deixou o médico e o seu criado entrarem na cabana. Juana levantou-se de perto do fogo e recuou quando o médico entrou, cobrindo o rosto do menino com a franja do seu xale. E, quando o médico se aproximou dela e estendeu a mão, apertou mais o menino contra o corpo e olhou para Kino, que estava onde as sombras do fogo lhe dançavam no rosto. Kino fez sinal com a cabeça e só então ela deixou o médico ver o menino. — Segure a luz — disse o médico e, quando o criado levantou bem alto a lanterna, olhou por um momento o ferimento no ombro do menino. Ficou por um instante pensativo e, depois, afastou a pálpebra do menino e olhou para o globo ocular. Bateu com a cabeça enquanto Coyotito esperneava contra ele. — Justamente como eu pensava — disse ele. — O veneno foi absorvido internamente e não tarda a se manifestar. Veja dentro do olho. Está azul. Kino olhou ansiosamente e viu que de fato estava um pouco azul. E não sabia se sempre estava um pouco azul ou não. Mas a armadilha estava preparada e ele não podia arriscarse. Os olhos do médico se umedeceram nas suas bolsas. — Vou dar-lhe alguma coisa para ver se conseguimos afastar o veneno — disse ele, entregando o menino a Kino. Tirou então da maleta um vidrinho com um pó branco e uma cápsula de gelatina. Encheu a cápsula com o pó. Depois, colocou outra cápsula em torno da primeira e fechou-a. Trabalhou em seguida com muita habilidade. Pegou o menino e apertou-lhe o lábio inferior até que ele abriu a boca. Com os dedos gordos, colocou a cápsula bem dentro da língua do menino, além do ponto em que poderia cuspi-la fora, e, por fim, apanhou no chão um jarrinho de pulque, deu um gole a Coyotito e pronto. Examinou de novo o olho do menino, franziu os lábios e pareceu que estava pensando. Devolveu afinal o menino a Juana e voltou-se para Kino. — Acho que o veneno atacará daqui a uma hora — disse ele. — O remédio que eu dei livrará o menino de sentir dor, mas voltarei daqui a uma hora. Acho que cheguei a tempo de salvá-lo. Respirou fundo e então saiu da cabana, seguido pelo criado com a lanterna. Juana cobrira o menino com o xale e olhava-o, cheia de ansiedade e medo. Kino se aproximou, levantou o xale e olhou para o menino. Moveu a mão para olhar embaixo da pálpebra e só então viu que a pérola ainda estava em sua mão. Foi então a uma caixa encostada à parede e pegou um pano velho. Embrulhou a pérola com o pano, foi até ao canto da cabana e cavou um buraco no chão de terra com os dedos. Colocou a pérola dentro do buraco, ao qual encheu de novo e dissimulou. Voltou então para junto do fogo, onde Juana estava agachada, olhando o rosto do menino. O médico, de volta à sua casa, sentou-se na sua cadeira e olhou para o relógio. Levaramlhe um pequeno lanche de chocolate, bolos e frutas e ele olhou para a comida com desgosto. Nas casas dos vizinhos, o assunto que dominaria todas as conversas durante muito tempo foi ventilado pela primeira vez para se ver o rumo que tomava. Os vizinhos mostraram uns aos outros como a pérola era grande e fizeram breves gestos acariciantes para mostrar como era bela. Daí por diante, passariam a olhar de perto Kino e Juana para ver se a riqueza iria virar a cabeça deles como é do hábito da riqueza. Todo mundo sabia por que o médico tinha ido à cabana. O homem não sabia dissimular e era muito bem compreendido. Lá fora, no estuário, um cardume compacto de peixinhos deslizou e bateu a água para livrar-se de um cardume de peixes grandes que avançavam para comê-los. Dentro das casas, os homens ouviram o borbulhar dos pequenos e o espadanar dos grandes durante o ataque. A umidade se levantou do Golfo e depositou-se nas moitas, nos cactos e nas pequenas árvores, formando gotas salgadas. E os ratos noturnos passaram pelo chão, enquanto os gaviões da noite os caçavam em silêncio. O cachorrinho preto e magro que tinha manchas amarelas em volta dos olhos chegou à porta de Kino e olhou para dentro. Quase deslocou as patas traseiras numa hora em que Kino olhou para ele, mas parou quando Kino olhou para outro canto. O cachorro não entrou na casa mas ficou olhando com frenético interesse Kino comer o seu feijão no prato de barro, que depois limpou com uma broa de milho. Comeu a broa e lavou tudo com um gole de pulque. Kino tinha acabado e estava enrolando um cigarro quando Juana o chamou com voz ansiosa: — Kino! Olhou para ela e se aproximou rapidamente porque havia visto medo nos olhos dela. Chegando perto, olhou, mas a luz era muito fraca. Jogou com o pé uma pilha de gravetos no braseiro para fazer uma boa chama e então viu o rosto de Coyotito. O rosto do menino estava muito vermelho, alguma coisa subia è descia pela garganta e um fio grosso de saliva lhe corria do canto da boca. As contrações dos músculos do estômago começaram e o menino vomitou muito. Kino se ajoelhou ao lado da mulher e disse: — O médico então sabia. Mas disse isso para si mesmo e para a mulher, porque a cabeça estava trancada e desconfiada e ele se lembrava do pozinho branco. Juana embalou o menino e cantou a Cantiga da Família, como se isso pudesse afastar o perigo, mas Coyotito vomitou e se contorceu nos braços dela. Houve então incerteza em Kino e a música do mal lhe palpitou na cabeça, quase sufocando a cantiga de Juana. O médico acabou de tomar o seu chocolate e comeu as migalhas de bolo caídas na mesa. Limpou os dedos num guardanapo, olhou para o relógio, levantou-se e pegou a maleta. A notícia da doença do menino circulou depressa entre as cabanas, porque a doença só tem pela frente a fome entre os inimigos dos pobres. Além disse com voz macia: — Parece que a sorte anda em companhia de amigas bem ruins. Todos acharam com um gesto que era assim mesmo e se levantaram para ir à casa de Kino. Os vizinhos atravessaram o escuro com o nariz coberto até se juntarem de novo na casa de Kino. Ficaram olhando e fizeram breves comentários sobre a tristeza que era aquilo acontecer numa hora de alegria e disseram: "Quem sabe é Deus". As velhas se agacharam ao lado de Juana para ajudá-la, se pudessem, e confortá-la, se não pudessem. O médico entrou então apressadamente, seguido pelo seu criado. Afugentou as velhas como se fossem galinhas. Pegou o menino, examinou-o e apalpou-lhe a cabeça. — O veneno se manifestou — disse ele. — Acho que posso dominá-lo. Vou fazer tudo o que é possível. Pediu água, jogou no copo três gotas de amônia, abriu a boca do menino e despejou o remédio. O menino tossiu e chorou com o tratamento e Juana observava-o com os olhos aflitos. O médico falou um pouco enquanto trabalhava. — É uma felicidade eu conhecer bem o veneno do escorpião. Do contrário... — disse ele e encolheu os ombros para mostrar o que poderia ter acontecido. Mas Kino estava desconfiado e não podia tirar os olhos da mala aberta do médico e do vidrinho de pó branco que havia nela. Pouco a pouco, os espasmos cederam e o menino se acalmou sob as mãos do médico. Coyotito deu então um profundo suspiro e adormeceu porque estava muito cansado de tanto que havia vomitado. O médico deitou o menino nos braços de Juana. — Agora, vai ficar bom, — disse ele. — Venci a batalha. E Juana olhou-o, cheia de admiração. O médico estava fechando a maleta e disse com voz bondosa: — Quando acha que pode me pagar essa conta? — Logo que vender minha pérola, irei pagar-lhe — disse Kino. — Ah, tem uma pérola? Uma boa pérola? — perguntou o médico, cheio de interesse. O coro dos vizinhos fez-se ouvir então. — Ele achou a Pérola do Mundo! — gritaram, fazendo um circulo com o polegar e o indicador para mostrar o tamanho da pérola. — Kino será um homem rico — exclamaram. — Ê uma pérola como nunca se viu! O médico se mostrou surpreso. — Foi mesmo? Eu não sabia disso. Guardou a pérola num lugar seguro? Quer que a guarde dentro de meu cofre? Os olhos de Kino estavam bem cerrados o as faces bem esticadas. — Está num lugar seguro — disse ele. — Vou vendê-la amanhã e então lhe irei pagar. O médico encolheu os ombros e os seus olhos úmidos nunca se afastaram dos olhos de Kino. Sabia que a pérola devia estar enterrada em algum canto da casa e esperava que Kino olhasse para o lugar onde a havia enterrado. — Seria uma pena que alguém roubasse a pérola antes de você vendê-la — disse o médico e viu os olhos de Kino se voltarem instintivamente de relance para o chão, perto do caibro lateral da cabana. Quando o médico saiu e todos os vizinhos, haviam voltado relutantemente para as suas casas, Kino se agachou ao lado do braseiro e escutou o barulho da noite, o suave murmúrio das ondas na praia e os latidos distantes dos cachorros, o deslizar do vento pelo teto da casa e as vozes dos vizinhos que conversavam nas suas casas. Na verdade, aquela gente não dorme firmemente a noite toda. Acorda de vez em quando, conversa um pouco e torna a dormir. Ao fim de algum tempo Kino levantou-se e foi até à porta da casa. Sentiu o cheiro do vento, procurou escutar qualquer ruído estranho que viesse em segredo e rastejando e tentou com os olhos penetrar a escuridão porque a música do mal lhe ressoava na cabeça e ele estava agitado e com medo. Depois de haver examinado a noite com os seus sentidos, foi ao lugar perto do caibro onde havia enterrado a pérola, tirou-a de lá, levou-a para a esteira onde dormia e debaixo da esteira cavou outro buraco no chão de terra e ali enterrou a sua pérola e cobriu-a. E Juana, sentada ao pé do fogo, observou-o com os olhos curiosos e, quando ele acabou de enterrar a pérola, perguntou: — De que é que está com medo? Kino procurou uma resposta exata e por fim disse: — De todos. E sentiu que uma capa de dureza se estendia sobre ele. Algum tempo depois, deitaram-se juntos na esteira e Juana não deitou naquela noite o menino no seu berço suspenso. Embalou-o nos braços e cobriu-lhe o rosto com o xale. E a última luz se apagou no braseiro. Mas a cabeça de Kino ardia mesmo durante o sono e ele sonhou que Coyotito sabia ler e que alguém do seu povo poderia dizer-lhe a verdade das coisas. E, no seu sonho, Coyotito lia um livro do tamanho de uma casa, com letras do tamanho de cachorros e as palavras galopavam e brincavam dentro do livro. E então a escuridão caiu sobre a página e, com a escuridão, a música do mal reapareceu e Kino se agitou no seu sono. E quando ele se agitou, os olhos de Juana se abriram na escuridão. E então Kino acordou, com a música do mal vibrando dentro dele e os ouvidos alerta. Foi então que do canto da cabana veio um ruído tão leve que poderia ser apenas um pensamento, um pequeno movimento furtivo, o toque de um pé no chão, o sopro quase inaudível de uma respiração controlada. Kino prendeu o fôlego para escutar e percebeu que a coisa má que lhe entrara em casa prendia também o fôlego para escutar. Durante algum tempo, não houve ruído algum no canto da cabana. Kino poderia pensar que havia imaginado o ruído, mas Juana pousou a mão nele em sinal de advertência e houve o ruído de novo! O sussurro de um pé na terra seca e um arranhar de dedos no chão. E um medo feroz se levantou no peito de Kino e, depois do medo, veio a raiva, como sempre acontecia. Levando a mão ao peito de onde a faca estava pendurada de um cordão, Kino deu um pulo de gato zangado em direção à coisa negra que ele sabia que estava no canto da cabana. Sentiu um pano nos dedos e atacou com a faca. Errou, atacou de novo e sentiu a faca enterrar-se no pano e houve então um clarão na sua cabeça e uma explosão de dor. Uma carreira abafada, passos em corrida e, depois, silêncio. Kino sentia o sangue quente correr-lhe da cabeça e ouvia Juana chamá-lo. — Kino! Kino! E havia terror na voz dela. Então, a frieza o dominou tão depressa quanto a raiva pouco antes e ele disse: — Estou bem. O que foi foi-se embora. Voltou tateando para a esteira. Juana já estava ao lado do fogo. Descobriu uma brasa entre as cinzas e colocou sobre ela tiras de palha de milho, soprando uma chama leve nas palhas de modo que uma luz fraca dançou dentro da cabana. E então Juana foi buscar num lugar secreto uma vela consagrada e acendeu-a na chama, colocando-a de pé numa pedra do braseiro. Os seus movimentos eram rápidos e ela cantarolava enquanto se movia. Mergulhou na água a ponta do xale e limpou o sangue da testa machucada de Kino. — Não é nada — disse Kino, mas os olhos e a voz eram duros e frios e um ódio persistente crescia dentro dele. A tensão que aumentava dentro de Juana chegou à superfície e ela disse, com os lábios apertados: — Essa coisa é má. Essa pérola é como um pecado! Vai acabar destruindo a gente. Jogue-a fora, Kino. Quebre-a com uma pedra. Enterre-a em algum lugar que depois esqueceremos. Devolva-a ao mar. Só nos trouxe mal. Ela vai-nos destruir, Kino, meu marido. E, à luz do fogo, os lábios e os olhos dela estavam transidos de medo. Mas havia determinação no rosto de Kino e também no seu espírito e na sua vontade. — É essa a nossa única oportunidade — disse ele. — Nosso filho irá à escola. Quebrará a panela dentro da qual estamos presos. — A pérola destruirá a todos nós — disse Juana, chorando. — Até a nosso filho. — Silêncio — disse Kino. — Não fale mais. Logo que amanhecer, nós venderemos a pérola. O mal irá com ela e só ficará o bem. Cale a boca, mulher. Olhou sombriamente para o fogo e percebeu então que ainda estava com a faca na mão. Levantando a mão, olhou para a lâmina e viu que havia um filete de sangue no aço. Por um momento pensou em limpar a faca nas calças mas mergulhou-a na terra e foi assim que a limpou. Os galos começaram a cantar ao longe, o ar mudou e a manhã veio chegando. O vento matinal enrugou as águas do estuário e sussurrou por entre os mangues, enquanto as ondas se quebravam na praia de cascalho cora um ritmo mais acelerado. Kino levantou a esteira, tirou a pérola, colocou-a diante dele e ficou a olhá-la. E a beleza da pérola, que faiscava e luzia à claridade da pequena vela, lhe seduziu a cabeça com a sua beleza. Tão bela era e tão suave com uma música própria — a sua música de promessa e prazer, a sua garantia do futuro, de conforto e de segurança. A sua quente luminosidade prometia uma cataplasma contra a doença e uma muralha contra o insulto. Fechava a porta à fome. E, enquanto Kino a olhava, os seus olhos se abrandaram e o seu rosto se descontraiu. Viu a pequena imagem da vela benta refletida na lisa superfície da pérola e de novo lhe soou aos ouvidos a linda música do fundo do mar, o tom da difusa luz verde abaixo da superfície. Olhando-o em segredo, Juana viu-o sorrir. E, por que eles eram de algum modo uma só pessoa e uma só intenção, ela sorriu com ele. E os dois começaram aquele dia com esperança.

A pérola  (John Steinbeck)Onde histórias criam vida. Descubra agora