Capítulo 4

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É espantosa a maneira pela qual uma pequena cidade mantém o controle de si mesma e de todos os seus elementos. Se um homem, uma mulher, uma criança ou um bebê age e se comporta dentro de um padrão estabelecido, não derruba muros, não se distingue de ninguém, não faz experiências de espécie alguma, não cai doente e não põe em perigo a calma, a paz de espírito ou o curso da vida ininterrupto da cidade, esse elemento pode desaparecer sem que nunca mais se fale nele. Mas basta que alguém se afaste do pensamento comum ou do padrão reconhecido para que os nervos dos habitantes vibrem e se estabeleçam comunicações através das linhas nervosas da cidade. Neste caso, todos os elementos entram em contato com o todo. Foi assim que se soube em La Paz logo às primeiras horas da manhã que Kino ia vender a sua pérola naquele dia. Souberam disso os vizinhos, pescadores de pérolas que moravam nas cabanas. Tiveram conhecimento do fato os chineses que eram donos dos armazéns. A notícia chegou à igreja, porque os coroinhas falaram sobre o caso. Ficaram a par de tudo as freiras, os mendigos do adro falaram sobre a venda porque estariam ali para receber os dízimos dos primeiros frutos da sorte. Os meninos souberam disso com muito interesse, mas, antes de mais nada, inteiraram-se do que ia acontecer aos compradores de pérolas e, quando o dia nasceu, estavam eles nos seus escritórios, cada qual sentado sozinho diante da sua bandeja de veludo preto, rolando as pérolas com as pontas dos dedos e pensando no papel que iriam desempenhar no caso. Supunha-se que os compradores de pérolas agiam por si mesmos, oferecendo preços em concorrência pelas pérolas que os pescadores levavam. E era outros tempos tinha sido assim. Mas era um método prejudicial porque muitas vezes, na ansiedade de oferecer um bom preço para conseguir uma boa pérola, tinha-se pago dinheiro em excesso aos pescadores. Era uma extravagância que não se podia incentivar. Por isso, passara a haver apenas um comprador de pérolas com muitas mãos e os homens que estavam sentados nos seus escritórios à espera de Kino já sabiam que preço iriam propor, até onde podiam subir e que método cada um deles usaria. E embora aqueles homens não ganhassem senão o seu salário havia grande expectativa entre eles, porque há sempre entusiasmo por uma caçada e, se a função de um homem for baixar um preço, ele encontrará alegria e satisfação em fazer baixar esse preço tanto quanto possível. Assim é porque todo homem no mundo age com o máximo da sua capacidade e não faz menos do que o máximo, pense o que pensar a esse respeito. Independentemente de qualquer prêmio que pudesse receber, de qualquer elogio, de qualquer promoção, um comprador de pérolas era um comprador de pérolas e o melhor e mais feliz dos compradores de pérolas era o que comprava pérolas pelos preços mais baixos possíveis. O sol estava naquela manhã quente e amarelo e absorvia a umidade do estuário e do Golfo, suspendendo-a no ar em cintilantes lençóis de modo que o ar vibrava e a visão era insubstancial. Uma visão pairava no ar ao norte da vila — a visão de uma montanha que estava a mais de trezentos quilômetros de distância, e as altaneiras encostas da montanha estavam cobertas de pinheiros, e um grande pico de pedra se elevava acima da linha de vegetação. E, na manhã desse dia, as canoas ficaram alinhadas na praia. Os pescadores não saíram para mergulhar em busca das pérolas porque muito iria acontecer e muito se teria de ver quando Kino fosse vender a grande pérola. — Aquela boa esposa, Juana — diziam de Kino ficaram sentados depois do café e falaram do que fariam se tivessem encontrado a pérola. Um deles disse que daria a pérola de presente ao Santo Padre, em Roma. Outro disse que pagaria missas pela sua alma e de todos os seus durante mil anos. Outro pensou que poderia pegar o dinheiro e distribuí-lo entre os pobres de La Paz e houve ainda um que pensou em todas as boas coisas que se podia fazer com o dinheiro da pérola, em todas as caridades, todos os benefícios e todos os socorros que seriam possíveis se houvesse dinheiro. Todos os vizinhos esperavam que o dinheiro não virasse a cabeça de Kino, não fizesse dele um homem rico, enxertando nele os galhos maus da cobiça, do ódio e da frieza. Kino era um homem muito estimado; seria uma pena que a pérola o destruísse. — Aquela boa esposa, Juana — diziam eles —, e o belo menino que é Coyotito com os outros que virão depois. Seria uma tristeza que a pérola destruísse todos eles. Para Kino e Juana, aquela era a grande manhã da vida dos dois, comparável apenas ao dia em que o menino nascera. Era aquele o dia sob cuja direção todos os outros se arrumariam. Diriam por exemplo: "Foi dois anos antes de vendermos a pérola" ou "Foi seis semanas depois de vendermos a pérola". Em vista disso, Juana mandou a cautela andar e vestiu Coyotito com as roupas que havia preparado para o batizado, no dia em que houvesse dinheiro para batizá-lo. E Juana penteou e trançou o cabelo dela, amarrando as duas pontas com dois lacinhos de fita vermelha, vestindo a saia e a blusa do seu casamento. O sol já estava em metade da sua subida quando afinal se aprontaram. As roupas surradas de Kino estavam pelo menos limpas e aquele era o seu último dia de vestir farrapos. No dia seguinte, ou talvez naquela mesma tarde, teria roupas novas. Os vizinhos, observando a porta de Kino através das gretas nas paredes das suas cabanas, vestiram-se e aprontaram-se também. Não havia neles nenhuma dúvida sobre o fato de acompanharem Kino e Juana quando fossem vender a pérola. Era uma coisa esperada. Tratava-se de um momento histórico e eles seriam loucos se não fossem. Seria quase um sinal de falta de amizade. Juana pôs o xale na cabeça e arranjou uma ponta debaixo do cotovelo direito, juntando-a com a mão direita para formar uma rede debaixo do braço e nessa rede colocou Coyotito, bem apoiado no xale, a fim de que ele pudesse ver tudo e talvez lembrar-se. Kino colocou na cabeça o seu grande chapéu de palha e passou a mão para ver se estava no lugar certo, não para trás ou de lado, como o usaria um rapaz solteiro e irresponsável, nem muito enterrado a prumo como o usaria um velho, mas um pouco inclinado para a frente para mostrar agressividade, seriedade e vigor. Muito se pode ver na maneira pela qual um homem usa o chapéu. Kino meteu os pés nas sandálias e puxou as correias para os calcanhares. A grande pérola foi embrulhada num pedaço de couro velho de veado e colocada num saquinho de couro guardado no bolso da camisa de Kino. Dobrou cuidadosamente a sua manta e passou-a numa faixa estreita por sobre o ombro esquerdo. Depois disso, estavam prontos. Kino saiu de casa cheio de dignidade, seguido de Juana, que carregava Coyotito. E, enquanto marchavam para a cidade pela rua banhada pelo riacho, os vizinhos se juntavam a eles. As casas expeliam gente; as portas vomitavam crianças. Mas, em vista da solenidade da ocasião, só uma pessoa caminhava ao lado de Kino, e era o irmão dele, Juan Tomás. Juan Tomás advertiu o irmão dizendo: — Deve ter cuidado para que não enganem você. — Muito cuidado — concordou Kino. — Não sabemos quais são os preços pagos em outros lugares — disse Juan Tomás. — Como é que vamos saber se o preço é justo quando não sabemos o que o comprador vai receber pela pérola em outro lugar? — É verdade — disse Kino —, mas como é que vamos saber? Estamos aqui e não lá. Enquanto se encaminhavam para a cidade, a multidão crescia atrás deles e Juan Tomás continuou a falar de puro nervosismo. — Antes de você nascer, Kino, os antigos pensaram numa maneira de conseguir um preço melhor para as suas pérolas. Pensaram que seria melhor que tivessem um agente que levaria todas as pérolas deles para a capital e ali as vendesse, ficando apenas com a sua parte do dinheiro. — Eu sei — disse Kino, batendo com a cabeça. — Era um bom pensamento esse. — Conseguiram um homem assim — continuou Juan Tomás. — Juntaram as pérolas e o homem partiu. Nunca mais se soube dele e as pérolas se perderam. Conseguiram outro homem, que partiu e nunca mais se soube dele. Depois disso, desistiram e voltaram ao jeito antigo. — Eu sei — disse Kino. — Ouvi nosso pai contar isso. A idéia era boa mas contra a religião e o padre mostrou isso bem claro. A perda das pérolas foi um castigo para aqueles que procuravam sair da posição que tinham na vida. O padre disse de maneira positiva que cada pessoa é como um soldado mandado por Deus para montar guarda a algum ponto da fortaleza do universo. Alguns ficam nos baluartes e outros bem embaixo, na escuridão das muralhas. Cada um deve, portanto, ficar firme no seu posto e não abandoná-lo, pois do contrário a fortaleza ficará aberta aos ataques do inferno. — Já ouvi esse sermão — disse Juan Tomás. — O padre diz todos os anos o mesmo. Enquanto caminhavam os irmãos apertaram um pouco os olhos, como eles e seus avós e bisavós faziam havia quatrocentos anos, desde a primeira vez em que os estrangeiros chegaram com argumentos e autoridade e pólvora para sustentar as duas coisas. Durante esses quatrocentos anos, o povo de Kino só havia aprendido uma defesa — apertar um pouco os olhos, fechar a boca e bater em retirada. Nada poderia romper essa muralha e eles se conservavam Íntegros do outro lado da muralha. O desfile sempre em aumento era solene, porque todos sentiam a importância daquele dia e as crianças que mostravam tendência a lutar, a gritar, a chorar, a roubar chapéus e embaraçar cabelos eram severamente reduzidas ao silêncio pelos pais. O dia era tão importante que um velho apareceu para ver, apoiado nos ombros fortes dos dois sobrinhos. O desfile deixou a parte das cabanas da praia e entrou na vila de pedra e cal, onde as ruas eram um pouco mais largas e havia estreitas calçadas ao lado dos prédios. E, como da outra vez, os mendigos acompanharam o cortejo quando este passou pela igreja. Os donos dos armazéns olharam o cortejo passar e os pequenos botequins perderam os seus fregueses e os proprietários fecharam as portas e se incorporaram à multidão. E o sol batia sobre as ruas da vila e até as pequenas pedras lançavam sombras pelo chão. A notícia da aproximação do cortejo ia à frente dele e nos pequenos escritórios escuros os compradores de pérolas aprumaram o corpo e ficaram atentos. Tiraram papéis das gavetas para que estivessem trabalhando no momento em que Kino aparecesse e guardaram as pérolas porque não convém que uma pérola inferior seja vista ao lado de uma excepcional, pois a notícia da beleza da pérola de Kino já lhes havia chegado aos ouvidos. Os escritórios dos compradores de pérolas estavam todos amontoados numa rua estreita e tinham grades e persianas nas janelas que cortavam a luz e só deixavam uma sombra macia entrar nos escritórios. Um homem gordo e lento estava num escritório, esperando. Tinha um rosto paternal e bondoso e os olhos brilhavam de cordialidade. Gostava muito de dar bom dia, de apertar cerimoniosamente as mãos. Era um homem alegre que sabia todas as anedotas e, apesar disso, dado à tristeza porque podia no meio de unia risada lembrar-se da morte da tia de um dos seus fregueses e de ficar com lágrimas nos olhos de pesar pela perda que o outro sofrerá. Naquele dia, havia colocado uma flor no vaso em cima de sua mesa, um hibisco vermelho, e o vaso estava ao lado da bandeja forrada de veludo preto à sua frente. Tinha feito a barba, escanhoando-a bem e estava com as mãos limpas e as unhas polidas. Tinha a porta aberta à luz da manhã e cantarolava baixinho enquanto praticava truques de prestidigitação. Rolava uma moeda de um lado para outro sobre os nós dos dedos, fazendo-a aparecer e desaparecer, girar e cintilar. A moeda surgia num instante e logo depois sumia e o homem nem sequer olhava o que fazia. Os dedos faziam tudo isso mecanicamente e com precisão, enquanto o homem cantarolava e olhava para a porta. Ouviu então o tropel da multidão que se aproximava e os dedos da mão direita trabalharam cada vez com mais pressa até que, no momento em que o vulto de Kino apareceu na porta, a moeda brilhou e desapareceu. — Bom dia, meu amigo — disse o homem gordo. — Em que posso servi-lo? Kino arregalou os olhos para a escuridão do pequeno escritório, ofuscado pela claridade que havia lá fora. Mas os olhos do comprador estavam firmes, cruéis e impassíveis como os de um gavião, enquanto o resto do rosto sorria em cumprimento. E, secretamente, por trás da mesa, a mão direita continuava a praticar com a moeda. — Tenho uma pérola — disse Kino. E Juan Tomás estava ao lado dele e fez uma careta ante a declaração dispensável. Os vizinhos olhavam da porta e um grupo de garotos subiu às grades da janela e olhou para dentro. Outros, de quatro pés, observavam a cena por entre as pernas de Kino. — Tem uma pérola? — disse o homem. — Há homens que trazem mais de uma dúzia. Mas vamos ver a sua pérola. Nós a avaliaremos e lhe daremos o melhor preço. Enquanto isso, os seus dedos rodavam febrilmente a moeda. Ora, Kino dispunha também instintivamente dos seus efeitos dramáticos. Tirou vagarosamente o saquinho de couro, desembrulhou mais vagarosamente ainda o couro velho e, então, deixou a grande pérola rolar na bandeja de veludo preto e, no mesmo instante, procurou com os olhos o rosto do comprador. Mas não houve sinal ou movimento algum e o rosto não mudou de expressão embora a mão escondida tivesse perdido a sua precisão. A moeda bateu num dos nós dos dedos e caiu em silêncio no colo do comprador. E os dedos escondidos crisparam-se. Quando afinal o homem estendeu a mão que estivera escondida, o indicador tocou a grande pérola, fazendo-a rolar na bandeja preta. Depois, o comprador pegou-a com o polegar e o indicador e levou-a para perto dos olhos, rolando-a no ar. Kino prendeu a respiração, os vizinhos também e a informação correu de boca em boca até às últimas pessoas agrupadas em frente à porta. — Está examinando a pérola. Ainda não falou em dinheiro. . . Nada ainda sobre preço. Nesse ponto, a mão do comprador se havia tornado uma personalidade. Jogou a grande pérola na bandeja e com o dedo estendido insultou-a, ao mesmo tempo que no rosto do homem surgia um sorriso melancólico e desdenhoso. — Sinto muito — disse ele, levantando um pouco os ombros como para indicar que não tinha culpa do infortúnio. — É uma pérola de grande valor — disse Kino. Os dedos do comprador empurraram a pérola bruscamente de tal modo que ela bateu e voltou várias vezes nas bordas da bandeja. — Nunca ouviu dizer que tudo demais é sobra? Pois é o que acontece com essa pérola. É grande demais. Quem poderia comprá-la? Não há mercado para coisas assim. É apenas uma curiosidade. Sinto muito. Pensava que era uma coisa de grande valor e é apenas uma curiosidade. O rosto de Kino se mostrava perplexo e preocupado. — Mas é a Pérola do Mundo! — exclamou — Ninguém nunca viu uma pérola assim! — Ao contrário, é grande e inaproveitável. Mas como curiosidade tem algum interesse. Um museu, por exemplo, poderá comprá-la para uma coleção de conchas. Posso dar-lhe por ela coisa de mil pesos. O rosto de Kino se mostrou sombrio e perigoso. — Vale cinqüenta mil. Sabe muito bem disso e está querendo me enganar. O comprador ouviu um murmúrio surdo percorrer a multidão quando o preço dele foi ouvido e sentiu um pequeno tremor de medo. — Não me culpe de nada — disse ele, prontamente. — Sou apenas um avaliador. Pergunte aos outros. Vá aos escritórios deles e mostre-lhes a sua pérola — ou, melhor, vamos chamá-los até aqui, para ver que não há nenhuma combinação. — Chamou o seu empregado e disse-lhe: Vá chamar Fulano, Beltrano e Sicrano. Peça que venham até aqui, mas não diga para que é. Diga apenas que tenho muito interesse em vê-los. A mão direita voltou para trás da mesa, tirou outra moeda do bolso e rolou-a de novo sobre os nós dos dedos. Os vizinhos de Kino começaram a conversar em voz baixa. Estavam mesmo com receio de uma coisa assim. A pérola era grande, mas tinha uma cor esquisita. Tinham suspeitado disso desde o princípio. E, afinal de contas, mil pesos não eram coisa para se jogar fora. Era uma riqueza relativa para um homem que nada tinha. Por que Kino não aceitava os mil pesos? Afinal, até àquele dia nada tinha de seu. Mas Kino estava rígido e áspero. Sentiu a aproximação do destino, o círculo dos lobos, os vôos em roda dos abutres. Sentia o mal coagular-se em torno dele e nada podia fazer para proteger-se. Ressoava-lhe aos ouvidos a música do mal. E, no veludo preto, a pérola brilhava tanto que o comprador não podia desviar os olhos dela. A multidão à porta ondulou, abriu-se e deixou os três compradores de pérolas passarem. Todos estavam em silêncio, receando perder uma palavra, deixar de ver um gesto ou uma expressão. Kino estava silencioso e vigilante. Sentiu alguém puxar-lhe as roupas atrás. Voltou-se e viu Juana. Olhou para ela e quando se voltou tinha a sua força renovada. Os compradores não olharam um para o outro, nem para a pérola. O homem sentado à mesa disse: — Avaliei essa pérola. O dono da mesma não acha justa a minha avaliação. Peço que examinem. . . isso e façam uma proposta. Note — disse ele a Kino — que não mencionei o preço que ofereci. O primeiro comprador, seco e nervoso, pareceu ver a pérola pela primeira vez. Apanhoua, rolou-a rapidamente entre o polegar e o indicador e, depois, jogou-a desdenhosamente na bandeja. — Não me metam na discussão — disse ele secamente. — Não vou fazer avaliação de espécie alguma. Isso não é uma pérola — é uma monstruosidade. E os seus lábios magros se apertaram. E o segundo comprador, um homem baixo com voz tímida e débil, apanhou a pérola e examinou-a cuidadosamente. Tirou uma lente do bolso e olhou-a, assim ampliada. Riu então maciamente. — Há pérolas de massa melhores — disse ele. — Conheço bem essas coisas. É uma pérola mole e gredosa que perderá a cor e morrerá dentro de alguns meses. Veja. . . Passou a lente às mãos de Kino e este que nunca vira a superfície de uma pérola ampliada ficou surpreso com o seu aspecto estranho. O terceiro comprador tirou a pérola das mãos de Kino e disse: — Tenho um freguês que gosta de colecionar coisas assim. Darei quinhentos pesos por ela e talvez o meu cliente me dê seiscentos. Kino estendeu bruscamente a mão e tomou a pérola dele. Tornou a embrulhá-la no couro, a colocá-la no saquinho e guardá-la no bolso. O homem sentado à mesa disse: — Talvez eu esteja sendo imprudente, mas mantenho a minha primeira oferta. Ainda estou disposto a dar mil pesos. Mas que é que está fazendo? — Estou sendo enganado — disse Kino, rispidamente. — A minha pérola não está à venda aqui. Vou oferecê-la em outros lugares, talvez até na capital. Os compradores se entreolharam. Compreendiam que se tinham excedido. Sabiam que seriam repreendidos severamente por isso. O homem sentado à mesa disse então prontamente: — Posso ir a mil e quinhentos. Mas Kino já ia saindo por entre a multidão que estava à porta. Ouvia vagamente o murmúrio das conversas e o sangue lhe latejava nos ouvidos. Saiu às pressas e se afastou, seguido pela mulher que quase corria atrás dele. Quando a noite caiu, os vizinhos nas cabanas da praia comeram broas de milho e feijão e discutiram o grande assunto daquela manhã. Não sabiam ao certo. A pérola tinha-lhes parecido magnífica, mas nunca tinham visto uma pérola assim e sem dúvida os compradores entendiam mais do que eles do valor das pérolas. — E vejam bem — diziam eles — que os compradores não tiveram conversa nenhuma sobre o assunto. Cada um dos três sabia por si mesmo que a pérola não tinha valor. — E se haviam combinado tudo antes? — Então temos sido roubados toda a nossa vida. Alguns afirmavam que talvez fosse melhor Kino ter aceito os mil e quinhentos pesos. Era muito dinheiro, mais do que ele já havia visto em sua vida. Talvez Kino fosse um idiota sem remédio. Podia ir à capital e não encontrar comprador para a sua pérola. Se isso acontecesse, ele nunca mais se levantaria. Outros, de espírito medroso, diziam que depois que Kino os desafiara, os compradores talvez não quisessem mais fazer negócio com nenhum deles. Talvez Kino, perdendo a cabeça, os houvesse destruído. Outros disseram, porém, que Kino era um homem corajoso e altivo. Tivera razão e todos lucrariam com a sua coragem. Orgulhavam-se de Kino. Na sua cabana, Kino estava agachado na esteira, pensando. Havia enterrado a pérola debaixo de uma pedra do fogão e olhou para as palhas trançadas da esteira até que os desenhos começaram a dançar na sua cabeça. Tinha perdido um mundo e não ganhara outro. Kino estava com medo. Nunca em sua vida fora até muito longe de casa. Tinha medo de pessoas desconhecidas e de lugares estranhos. Estava aterrorizado com o mundo de estranheza que era a capital. Ficava além da água e além das montanhas por mais de mil quilômetros e cada quilômetro estranho e temível era apavorante. Mas Kino tinha perdido o seu velho mundo e não podia deixar de entrar num mundo novo. O seu sonho do futuro era real e não podia ser destruído. Depois, tinha dito que iria e isso fazia também da sua ida uma coisa real. Resolver que ia e dizer que ia era já meio caminho andado. Juana observou-o enquanto ele enterrava a pérola e continuou a olhá-lo enquanto lavava Coyotito e o amamentava e, depois, enquanto fazia as broas de milho para o jantar. Juan Tomás entrou e se agachou ao lado de Kino. Ficou ali em silêncio durante algum tempo, até que Kino perguntou: — Que mais posso fazer? São ladrões. Juan Tomás fez um gesto solene de assentimento. Era mais velho e Kino queria a opinião sábia dele. — É difícil saber, Kino. Bem sabemos que somos roubados em tudo desde que nascemos até que morremos, quando cobram demais pelos nossos caixões. Mas vamos vivendo. Você desafiou não apenas os compradores de pérolas, mas toda a armação, a vida toda como é organizada, e eu tenho medo por sua causa. — Posso ter medo de alguma coisa senão de morrer de fome? — perguntou Kino. Mas Juan Tomás sacudiu vagarosamente a cabeça. — Disso todos nós temos que ter medo. Mas vamos supor que você tenha razão — que a sua pérola tenha grande valor — acha que o caso está encerrado? — Que quer dizer com isso? — Não sei mas tenho medo por sua causa. É terreno novo em que você vai pisar sem saber o caminho. — Mas irei, irei já — disse Kino. — Sim, isso você deve fazer. O que não sei é se as coisas serão muito diferentes na capital.. Aqui, você tem amigos e a mim que sou seu irmão. Lá, não terá ninguém. — Que é que eu posso fazer? Isso é uma indecência muito grande. Meu filho tem de ter uma oportunidade. É isso que eles estão atacando. Meus amigos me protegerão. — Só enquanto eles mesmos não correrem perigo nem tiverem qualquer inconveniente com isso — disse Juan Tomás. Levantou-se então e disse: — Vá com Deus. — Vá com Deus — disse Kino e nem levantou a vista porque as palavras tinham uma estranha frieza. Muito tempo depois de Juan Tomás ter saído, Kino ficou sentado pensativamente na sua esteira. A letargia dominava-o juntamente com uma desesperança cinzenta. Todos os caminhos diante dele pareciam bloqueados. Só ouvia na cabeça a música negra do inimigo. Todos os seus sentidos estavam ardentemente vivos, mas o seu espírito voltava à profunda participação em todas as coisas, o dom que herdara do seu povo. Ouvia os menores ruídos da noite que avançava, os sonolentos queixumes das aves que se aninhavam, a agonia amorosa dos gatos, a ida e volta das ondas mansas na praia e o silvo simples da distância. O fogo teve um clarão súbito que fez o desenho da esteira saltar diante dos seus olhos arregalados. Juana olhava-o, cheia de preocupação, mas conhecia-o e sabia que a melhor maneira de ajudá-lo era ficar em silêncio e junto dele. E como se ela pudesse também ouvir a Canção do Mal, lutou contra ela cantando suavemente a melodia da família, da segurança, do calor e da unidade da família. Tinha Coyotito nos braços e cantava para ele, a fim de afastar o mal, e a voz dela era corajosa ante a ameaça da música negra. Kino não se moveu, nem disse que queria jantar. Juana sabia que ele pediria no momento em que estivesse com vontade. Kino estava com os olhos parados e podia sentir o mal cauteloso e vigilante que rondava perto da casa. Sentia as coisas rastejantes e negras que esperavam que ele saísse para a noite. Era uma coisa torva e temível, mas que o chamava, ameaçando-o e desafiando-o. Levou a mão direita à camisa e sentiu.a faca. De olhos bem abertos, levantou-se e encaminhou-se para a porta. Juana quis fazê-lo parar. Levantou a mão para que ele se detivesse e abriu a boca cheia de horror. Durante muito tempo, Kino olhou para a escuridão e afinal saiu. Juana ouviu a breve carreira, a luta arquejante e a pancada. Ficou por um momento paralisada de terror, mas depois arreganhou os dentes numa expressão felina. Deitou Coyotito no chão. Apanhou uma pedra do fogão e correu para fora, mas quando lá chegou tudo estava terminado. Kino estava estendido no chão e lutava por levantar-se, mas não havia ninguém perto dele. Só as sombras, o barulho das ondas e o sibilar da distância. Mas o mal rondava por ali, escondido atrás das moitas da cerca, encolhido na sombra ao lado da casa, pairando no ar. Juana largou a pedra, passou os braços em torno de Kino e ajudou-o a levantar-se e a voltar para casa. O sangue lhe escorria da cabeça e havia um comprido corte profundo da orelha até ao queixo, que sangrava. Kino estava apenas semiconsciente. Sacudia a cabeça de um lado para outro. A camisa estava dilacerada e as suas roupas meio arrancadas. Juana sentou-o na esteira e enxugou com a saia o sangue do rosto. Deu-lhe pulque para beber numa tigela. Mas Kino, ainda depois disso, sacudia a cabeça para afastar as trevas. — Quem foi? — perguntou Juana. — Não sei — disse Kino. — Não vi. Juana trouxe uma vasilha de barro com água e lavou-lhe o talho do rosto, enquanto ele olhava fixamente para a frente. — Kino, meu marido, está-me ouvindo? — Estou ouvindo. — A pérola é perigo. Vamos destruí-la antes que nos destrua. Vamos esmagá-la entre duas pedras. Ou então vamos jogá-la de novo dentro do mar, que é o lugar dela. E, enquanto ela falava, a luz voltou aos olhos de Kino. Brilharam ferozmente, ao mesmo tempo que os seus músculos e a sua vontade se enrijaram. — Não — disse ele. — Vou lutar contra essa coisa. Vencerei. Teremos a nossa oportunidade. — Bateu com o punho na esteira e disse: — Ninguém tomará a nossa sorte de nós. — Pousou ternamente a mão no ombro de Juana. — Acredite em mim que sou um homem. E o seu rosto se encheu de malícia. — Quando amanhecer, tomaremos a nossa canoa e iremos para a capital do outro lado das montanhas, você e eu. Não seremos roubados. Eu sou um homem. — Tenho medo, Kino — disse ela, com voz rouca. — Um homem pode ser morto. Vamos jogar a pérola no mar. — Cale a boca. Eu sou homem. Cale a boca. — Ela se calou porque havia autoridade na voz dele. — Vamos dormir um pouco. Partiremos logo que clarear. Não está com medo de ir comigo? — Não, marida Os olhos dele se enterneceram e ele lhe tomou o rosto com a mão. — Vamos dormir um pouco.

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A pérola  (John Steinbeck)Onde histórias criam vida. Descubra agora