A lua minguante nasceu antes que o primeiro galo cantasse. Kino abriu os olhos na escuridão, porque sentiu algum movimento perto dele, mas não se moveu. Só os seus olhos penetraram a escuridão e a luz pálida da lua que entrava pelas gretas da parede da cabana. Viu então Juana levantar-se em silêncio de junto dele e encaminhar-se para o fogão. Tão cuidadosamente se movia que ele quase não ouviu barulho quando ela levantou a pedra do fogão. Deslizou então para a porta como uma sombra. Parou um instante ao lado do berço de Coyotito e, em seguida, foi para a porta e desapareceu. A raiva cresceu dentro de Kino. Levantou-se e seguiu-a tão silenciosamente quanto ela havia saído e ouviu-lhe os passos rápidos na direção da praia. Acompanhou-a, sentindo o sangue subir-lhe à cabeça. Ela se afastou das cabanas, galgou cambaleante os pequenos rochedos que havia no caminho da praia. Foi então que o ouviu aproximar-se e começou a correr. O braço dela já estava levantado para o arremesso quando ele de um pulo, agarrou-lhe o braço e tomou a pérola. Ele lhe bateu no rosto com o punho fechado e ela caiu nos rochedos, recebendo então dele um pontapé no lado. À luz pálida, viu as ondas se quebrarem sobre ela e a saia flutuar para depois se lhe colar às pernas quando a água refluía. Kino olhou para ela e arreganhou os dentes. Silvou para ela como se fosse uma cobra e Juana encarou-o de olhos arregalados sem medo, como um carneiro diante do magarefe. Ela sabia que havia dentro dele a vontade de matar e aceitava isso, sem resistir, nem protestar sequer. E então a raiva o abandonou e um profundo desgosto surgiu em lugar dela. Afastou-se e voltou pela praia para as cabanas. Os seus sentidos estavam embotados pelas emoções. Ouviu a carreira, tirou a faca e precipitou-se sobre o vulto negro e sentiu a faca cravar-se na carne de alguém e então caiu de joelhos e, depois, no chão. Dedos ansiosos percorreram-lhe as roupas. Os dedos febris davam busca nele, enquanto a pérola, que caíra da mão, brilhava atrás de uma pequena pedra no caminho. Brilhava à branda luz da lua. Juana arrastou-se dos rochedos à beira da água e levantou-se. Havia uma dor surda no rosto e o lado lhe doía. Firmou-se um momento nos joelhos, com a saia molhada colada à perna. Dentro dela não havia raiva em relação a Kino. Ele tinha dito "Eu sou um homem" e isso significava certas coisas para Juana. Significava que ele era meio louco e meio deus. Significava que Kino investiria com a sua força contra uma montanha e com a sua força enfrentaria o mar. Juana, com a sua alma de mulher, sabia que a montanha continuaria firme enquanto o homem se despedaçaria e que o mar se levantaria fazendo o homem afogar-se. Mas era isso que fazia dele um homem, meio louco e meio deus, e Juana precisava de um homem. Não podia viver sem um homem. Embora não compreendesse bem essas diferenças entre o homem e a mulher, sabia delas, aceitavaas è precisava delas. É claro que ela o seguiria, isso nem se discutia. Às vezes, a sua qualidade de mulher, a sensatez, a prudência, o instinto de conservação podiam penetrar a virilidade de Kino e salvá-los a todos. Ficou penosamente de pé, tomou nas pequenas ondas um pouco de água nas mãos em concha e lavou o rosto machucado com a água salgada que ardia e depois se arrastou pela praia no encalço de Kino. Um bando de nuvens escamosas viera do sul, cobrindo o céu. A lua pálida entrava e saía dos novelos de nuvens, de modo que Juana caminhava um momento na luz e no momento seguinte, no escuro. Estava com o corpo vergado de dor e a cabeça baixa. Entrou na Unha de vegetação quando a lua estava encoberta, mas, logo que ela brilhou de novo, Juana viu a cintilação da grande pérola no caminho atrás da pedra. Ajoelhou-se e apanhou-a, enquanto a lua se escondia de novo atrás da escuridão das nuvens. Continuou de joelhos enquanto resolvia se devia voltar para o mar e acabar o que começara. Enquanto pensava, a lua reapareceu e ela viu dois vultos escuros estendidos no caminho à frente dela. Correu para lá e viu que um deles era Kino e o outro, um desconhecido de cuja garganta escorria o sangue negro. Kino moveu-se vagarosamente, os braços e as pernas se agitaram como os de um inseto esmagado e um murmúrio pastoso lhe saiu da boca. Naquele instante, Juana compreendeu que a vida antiga se fora para sempre. Um homem morto no caminho e a faca de Kino com a lâmina ensangüentada ao lado dele convenceram-na disso. Durante todo o tempo, Juana tentara salvar alguma coisa da velha paz dos tempos de antes da pérola. Mas já se havia perdido tudo e não podia mais ser salvo. Sabendo disso, Juana abandonou o passado no mesmo instante. Nada mais restava a fazer senão salvarem-se. A dor desaparecera e a lentidão também. Arrastou rapidamente o morto do caminho para o esconderijo do mato. Aproximou-se de Kino e limpou-lhe o rosto com a saia. Ele estava recobrando os sentidos e gemeu. — Levaram a pérola. Perdi-a. Agora, tudo está acabado — disse ele. — A pérola se foi. Juana fê-lo calar-se, como faria a uma criança doente. — Não fale — disse ela. — Aqui está a sua pérola. Achei-a no caminho Está ouvindo? Aqui está a pérola. Está compreendendo? Você matou um homem. Temos de sair daqui. Virão buscar-nos, compreende? Temos de sair daqui antes que amanheça. — Fui atacado — disse Kino, inquietamente. — Tive de atacar também para não morrer. — Já se esqueceu de ontem? — perguntou Joana. — Pensa que isso terá alguma importância? Lembra-se dos homens da vila? Acha que a sua explicação adiantará alguma coisa? Kino deu um grande suspiro e ^procurou reagir à sua fraqueza. — Não — disse ele. — Você tem razão. A sua vontade se fortaleceu e ele voltou a ser um homem. — Vá até nossa casa e apanhe Coyotito — disse ele. — Traga todo o milho que temos. Vou puxar a canoa para dentro da água e partiremos então. Pegou a faca e afastou-se. Marchou ainda trôpego para a praia e chegou à canoa. Quando a luz reapareceu, ele viu que havia um grande rombo no fundo da canoa.. Uma raiva ardente invadiu-o e deu-lhe força. As trevas se fechavam sobre ele e sua família. A música do mal enchia a noite, pairava sobre o mangue e soava no compasso das ondas. A canoa de seu avô, tantas vezes recoberta de massa, com um rombo no casco. Era uma maldade além de tudo o que se podia imaginar. Matar um homem não era tão ruim quanto matar uma canoa. Uma canoa não tem filhos, não pode proteger-se, e uma canoa ferida não tem mais cura. Havia tristeza na raiva de Kino mas aquilo o havia levado a um ponto de tensão que nada mais poderia quebrar. Passara a ser um animal para esconder-se, para atacar, e só vivia dai por diante para proteger-se e a sua família. Não tinha conhecimento da dor na cabeça. Correu da praia e correu através da linha de vegetação para a sua cabana, sem pensar nem por um momento em tomar a canoa de um dos seus vizinhos. Um pensamento assim não lhe passava pela cabeça do mesmo modo que nunca pensaria em danificar uma canoa. Os galos cantavam e a alvorada não estava muito distante. A fumaça dos primeiros fogões acesos se levantava das paredes de algumas cabanas e sentia-se no ar o cheiro das primeiras broas de milho. Os pássaros madruga-dores já começavam a mover-se no mato. A lua fraca estava perdendo a sua luz e as nuvens engrossavam e se amontoavam para os lados do sul. O vento soprava livremente pelo estuário. Era um vento nervoso, agitado, que trazia no hálito um cheiro de tempestade, espalhando pelo ar mudança e tensão. Correndo para a casa, Kino sentiu um assomo de satisfação. Não estava mais confuso porque só havia uma coisa a fazer e Kino levou a mão primeiro à grande pérola no bolso da camisa e depois à faca por dentro da camisa. Viu de repente um clarão à sua frente e, depois, sem solução de continuidade, uma alta chama pulou para o alto da escuridão com tremendo fragor. Uma grande pira de fogo iluminou o caminho. Kino começou a correr. Sabia que era a sua casa e sabia que aquelas casas de varas podiam arder totalmente em poucos momentos. E, enquanto corria, viu um vulto que corria para ele. Era Juana com Coyotito nos braços e a manta de Kino na mão. O menino gemia com medo e os olhos de Juana estavam arregalados e cheios de pavor. Kino viu que a casa estava perdida e não fez perguntas a Juana. Já sabia mas ela disse: — Estava tudo revirado e com o chão todo cavado. Até no berço de Coyotito mexeram e, enquanto eu estava olhando, tocaram fogo na casa pelo lado de fora. A violenta luz da casa incendiada iluminava fortemente o rosto de Kino. — Quem? — perguntou ele. — Não sei. Os homens das trevas. Os vizinhos estavam saindo às carreiras das suas casas, olhando as fagulhas que vinham no ar e batendo-as com os pés para salvar as suas casas. De repente, Kino teve medo. A luz era uma fonte de medo. Lembrou-se do homem morto que estava estendido no mato ao lado do caminho e tomou Juana pelo braço, levando-a para a sombra da casa, longe da luz, porque a luz era um perigo para ele. Pensou por um momento e então moveu-se entre as sombras até que chegou à casa de Juan Tomás, seu irmão, e entrou, puxando Juana. Lá fora, podia ouvir as vozes das crianças e os gritos dos vizinhos, porque os seus amigos pensavam que ele podia estar dentro da casa incendiada. A casa de Juan Tomás era quase exatamente como a de Kino. Quase todas as casas da praia eram semelhantes e deixavam passar a luz e o ar. Por isso, Juana e Kino, sentados num canto da casa do irmão, viam através da parede de varas as labaredas que subiam para o céu. Viram que eram altas e furiosas, viram o teto cair e viram o fogo morrer tão rapidamente quanto um fogo de gravetos. Ouviram os gritos de advertência dos amigos, e o grito trêmulo e lancinante de Apolonia, mulher de Juan Tomás. Sendo a parente mais próxima, emitia um lamento formal pelos mortos da família. Apolonia compreendeu que estava com o xale velho e correu para casa a fim de pegar o xale novo. Enquanto ela procurava numa caixa junto à parede, Kino disse calmamente: — Deixe de choro, Apolonia. Estamos aqui intactos. — Como foi que chegou aqui? — perguntou ela. — Não faça perguntas, Apolonia. Vá chamar Juan Tomás e não diga senão a ele que estamos aqui. Isso é muito importante para nós. Ela parou, sem saber o que fazer com as mãos à frente dela, e disse: — Sim, cunhado. Dai a poucos minutos, Juan Tomás chegou com ela. Acendeu uma vela, foi para onde eles estavam encolhidos num canto e disse: — Apolonia, vigie a porta e não deixe ninguém entrar. — Juan Tomás era mais velho e havia assumido a autoridade. — E agora, meu irmão? — Fui atacado no escuro — disse Kino. — Na luta, matei um homem. — Quem? — Não sei. Tudo estava escuro. — Tudo isso é a pérola — disse Juan Tomás. — O demônio está nessa pérola. Você já a devia ter vendido, passando o demônio para outras mãos. Talvez ainda possa vendê-la e comprar um pouco de paz. Kino então disse: — Meu irmão, sofri um insulto que me dói mais do que a perda de minha vida. Minha canoa está quebrada na praia, minha casa está queimada e no mato está estendido um morto. Toda a fuga é impossível. Tem de esconder-nos, meu irmão. E Kino, olhando bem, viu profunda preocupação nos olhos do irmão e lhe impediu uma recusa. — Não será por muito tempo. Só até o dia passar e a outra noite chegar. Iremos então. — Esconderei você — disse Juan Tomás. — Não quero trazer o perigo para você. Sei que sou como uma lepra. Mas irei à noite e você ficará em segurança. — Protegerei você — disse Juan Tomás e chamou: — Apolonia, feche essa porta. Não diga nem num sussurro que Kino está aqui. Passaram o dia em silêncio na escuridão da casa e ouviram os vizinhos falarem deles. Pelas paredes da casa podiam ver os vizinhos remexendo as cinzas para ver se encontravam os ossos. Encolhidos na casa de Juan Tomás, ouviram as exclamações escandalizadas dos vizinhos quando souberam da canoa furada. Juan Tomás se misturava com os vizinhos para evitar suspeitas e apresentava hipóteses e opiniões sobre o que havia acontecido a Kino e a Juana e ao menino. Dizia a um: "Acho que foram para o sul pela costa para fugir do mal que estava com eles". E a outro: "Kino não iria deixar o mar. Talvez tivesse encontrado outra canoa". E acrescentava: "Apolonia está doente de tão abalada que ficou". E, naquele dia, o vento se levantou para fustigar o Golfo e despedaçou as algas e os sargaços que orlavam a costa. O vento uivou através das cabanas da praia e nenhum barco estava em segurança no mar. Juan Tomás disse então aos vizinhos: "Kino está perdido. Se saiu para o mar, deve estar afogado a uma hora destas". E depois de cada viagem entre os vizinhos, Juan Tomás voltava com alguma coisa emprestada. Levou uma pequena sacola de palha cheia de feijão e uma cabaça com arroz. Conseguiu um vidro de pimenta seca, um saco de sal e também um comprido facão, de 45 centímetros de comprimento e pesado como um pequeno machado, servindo de arma e de instrumento. Quando Kino viu o facão, os seus olhos brilharam. Alisou a lâmina e experimentou a lâmina com o polegar. O vento gemia sobre o Golfo e embranquecia o mar. Os mangues mergulhavam na água como gado assustado e uma fina poeira arenosa se elevava da terra e pairava sobre o mar como uma nuvem sufocante. O vento espalhou as nuvens e limpou o céu e espalhou a areia da terra como neve. Quando a noite se aproximava, Juan Tomás conversou muito tempo com o irmão. — Para onde vai? — Para o norte — disse Kino. — Soube que há cidades no norte. — Evite a praia. Estão organizando uma patrulha para procurá-lo na praia. Os homens da cidade vão procurá-lo. Ainda tem a pérola? — Tenho. E vou ficar com ela. Poderia ter dado a pérola como um presente, mas agora ela é minha desgraça e minha vida e vou ficar com ela. Coyotito choramingou e Juana murmurou algumas palavras mágicas para que ele ficasse calado. — O vento é bom — disse Juan Tomás. — Não haverá rastros. Saíram em silêncio no escuro antes que a lua nascesse. A família se despediu formalmente na casa de Juan Tomás. Juana levava Coyotito nas costas, coberto e sustentado pelo xale, e o menino dormia, com o rosto de lado contra o ombro da mãe. O xale cobria o menino e uma ponta estava passada sobre o nariz de Juana a fim de protegê-la do ar perigoso da noite. Juan Tomás abraçou o irmão e beijou-o nas duas faces. — Vá com Deus — disse ele e isso era como uma morte. — Não vai-se desfazer da pérola? — A pérola é agora minha alma — disse Kino. — Se abrir mão dela, perderei minha alma. Vá com Deus também
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A pérola (John Steinbeck)
RandomHistória comovente de uma pérola enorme, de como foi descoberta e de como se perdeu, levando com ela os sonhos bons e maus que representava. História também de uma família e da solidariedade especial entre uma mulher, um pobre pescador índio e o fil...