▾ ▿ Jafar ▾ ▿
Eu podia sentir pelo canto dos olhos que Lucas me encarava impiedosamente, se segurando para não perguntar de uma vez o que ele tanto gostaria de saber. Porém eu realmente não me importava, sempre fui muito introspectivo e reservado, talvez apenas um resquício da guerra que eu e meus pais fugimos. Como uma ferida difícil de cicatrizar, a todo instante que eu fechasse meus olhos, via novamente, todo o horror pelo qual passamos. Sob minhas pálpebras apenas sofrimento e tristeza, gritos e destruição. Talvez um dia tais imagens saíssem de dentro de mim, talvez elas nunca me abandonassem. Minha mãe costumava dizer - geralmente enquanto afagava meus cabelos quando eu chorava encolhido em seu colo: "Existem feridas no corpo e no coração, que depois de fechadas, secam e somem. Porém há também feridas que vão mais além, e estão depositadas em nossa alma, essas ficam permanentemente abertas, apenas aguardando uma batida para voltarem a sangrar" E como se só depois de ditas palavras, percebesse a falta de consolo que elas carregavam, parava por um instante, mirava o nada e voltava a me afagar com uma promessa de amanhecer: "Acredito que apenas o sal do mar possa derradeiramente, fechar essa ferida da alma." E era exatamente esse conselho que segui assim que consegui abrigo no Brasil.
Hoje foi um dia atípico; viemos para o mar sem as crianças e no fim acabamos por nos perder. A ONG está passando por dificuldades financeiras então não pudemos trazer nem um localizador, e assim, fomos condenados a nos perder na imensidão imperdoável das águas. É como se as pessoas estivessem tão fechadas dentro de si que não há espaço para a compaixão; antigamente quanto as guerras do Oriente começavam a eclodir, havia muita ajuda e muita gente disposta a estender a mão. Atualmente, o sofrimento alheio não causa mais espanto; a morte de uma criança por falta de alimento não comove mais, o sofrimento é banal, a dor é normal e a morte, um advento corriqueiro. Tenho a impressão que esse endurecimento do coração impede que o outro veja mais do que a si - que olhe o diferente e se veja refletido, que suscite o amor há muito tempo perdido - mas tudo o que tenho visto é uma falha no coração. Há sobretudo uma dificuldade em escancarar as dores do peito, uma resistência que impede que as dores sejam devidamente tratadas e - quem sabe um dia - curadas. Mas dentro mim o mar lavava sem dó as feridas que eu trazia, de modo que não me importava em ficar perdido no mar, para mim eu nunca estava sozinho. Já é suficientemente doloroso ver nossas crianças padecendo de suas mais exóticas doenças e dos produto do que elas se tornaram assim que a guerra começou a reagir. Tal qual um elemento químico que prejudica e desgasta o outro até destruí-lo; a guerra ela nos destrói com intensidade parecida - mas nem sempre arrasa com tudo de uma vez. A ONG começou oferecendo um tratamento que era tudo - menos médico, ofereciam o que a doença tiraria, o que a vida - se findada - não ofertaria. Sobretudo, oferecia sonhos e experiências; e a organização prosperava com a ajuda da população, até que veio as guerras e com elas as crianças que chegavam ao Brasil das formas mais impossíveis - mas chegavam. E o que antes era movido pela vontade de ofertar sonhos, agora funcionava como em um piloto automático de necessidades urgentes; uma criança chegava só ossos: consultar, medicar, alimentar; outra chegava com algum ferimento gravíssimo: ambulância, internar, operar, levantar fundos, revivê-la. E foi assim que a ONG foi crescendo, e o que deveria ser um papel do governo foi sendo feito por eles - alguém precisava fazer alguma coisa! Mas o dia a dia dos esforços, o dinheiro arrecadado, não venciam a demanda diária de crianças. Pouco a pouco, a organização que era gigantesca se tornou quase que insustentável, e foi mais ou menos nessa época que eu cheguei ao Brasil.
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Sociedade das Sereias - Reino de Aletheia
FantasíaDesde que os deuses criaram as sereias, o comando e organização delas é feita pela Rainha Aletheia. Sob suas ordens, as sereias trabalharam com afinco por eras e sempre tiveram em mente a maior verdade de suas vidas: o amor não existe pois elas são...