CAPÍTULO 3 CARNE E OSSO, CABELO E PESCOÇO

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Tomei meu café e saí. Fora de minha casa estava lá me esperando encostada na parede, Iara, minha primeira e única amiga de carne e osso. Conheci-a quanto tinha seis anos e desde então, num fiquei mais sozinho em casa, não por tanto tempo como antes. Nesta mesma época, meu amigo imaginário sumiu. Num sei ao certo se ele sumiu porque deixei de acreditá nele ou se deixei de acreditá nele porque ele sumiu. Eu e Iara nunca fomos apresentados. Um belo dia, tia Nast havia saído pro trabalho e ela simplesmente apareceu em casa. Uma coisa que todas as crianças têm é que elas gostam de brincá com outras crianças, num importando cô de pele, gênero ou sexo, então num perguntei o que ela fazia em minha casa e como havia entrado. Tudo que perguntei foi seu nome e se ela queria brincá comigo. Ofereci até mesmo meu boneco mais legal pra vê se ela aceitava. Muitas vezes quando tia Nast saia, ela vinha brincá comigo, sempre surgindo dentro de casa, sem batê na porta, sem mostrá de onde veio. Se ela batesse na porta, eu nunca abriria, pois minha tia sempre disse que eu num abrisse a porta pra seu ninguém quando ela estivesse fora. As aparições de Iara se tornaram um método pra mim sabê quando minha tia tava fora, sempre que ela aparecia, era porque Anastácia havia saído. Lembro-me de uma vez em que eu achava que existia um monstro debaixo de minha cama e Iara foi lá pra vê se tinha mesmo. Aos sete anos passamos a estudá na mesma escola e descobri que minha tia era amiga do pai dela. Isto possuía uma grande importância, pois agora eu podia tê certeza que Iara num era só fruto da minha imaginação, como meu antigo amigo imaginário. Ela era real e de carne e osso. Juntamente comigo, nós éramos os dois esquisitões da escola. A característica que tornava Iara estranha era seu cabelo, pois este era na maioria do tempo, de cor ruivo brilhante, uma cô incomum, que fazia os colegas de classe a chamarem de laranjeira enferrujada. Quando falo que seu cabelo era na maioria do tempo laranja, quero dizê que sempre tive a impressão de que seu cabelo mudava de cô. Às vezes mudava rapidamente pro amarelo, voltava a sê ruivo e depois mudava pro verde. Isto fez com que eu a apelidasse de Farol. Uma vez, aos meus sete anos, perguntei como ela fazia aquilo e pedi que me ensinasse. Ela disse que aquilo era apenas minha imaginação, que era muito fértil. Realmente, apenas eu parecia notá que aquilo acontecia, e só acontecia quando estávamos sós em casa, nunca quando estávamos na escola, cercados por outras crianças. De fato acho que minha cabeça tem a estranha mania de me pregá peças. Nesta mesma época, mesmo com a alegria de tê Iara, uma tristeza que num me pertencia baixara em mim, como se existisse uma criança abandonada chorando dentro de meu coração. Por vezes eu a ignorava, mas ela continuô a me afetá. Até então, eu nunca tinha sonhado, mas já escutara aqueles choros durante o sono. A partir de meus 13 anos, quando ia para a escola, Iara sempre me esperava do lado de fora da casa, encostada na parede, naquele horário e nunca tocava a campainha ou batia na porta pra entrá. Era quase como se fosse uma segurança me escoltando até a escola. E ali, como de costume, estava ela.

– Você sabia que ficaria mais bonito se penteasse o cabelo? – perguntô ela rindo logo que me aproximei. – Parece um ninho de rolinha.

– Bonito, eu seria se nascesse de novo – respondi com um sorriso de lado e logo começamos a andá.

Íamos a pé pra escola, mas o trânsito num ajudava muito. Não havia muitos semáforos em nosso caminho e os carros corriam muito naquela hora do dia. Os passos que dávamos eram curtos e rápidos. Se você anda devagá em Fortaleza, está praticamente exigindo que seja assaltado e convenhamos, uma menina e um tampinha parecem presas fáceis.

– As garotas preferem garotos de cabelo curto, sabia? – disse Iara. Fazia um tempo que ela tentava me fazê cortá o cabelo.

– Trágico – decidi cortá a conversa. – Como cê acha que vai sê as ferias?

– Ainda não sei. Talvez eu vá... Viajar com meu pai. E as suas?

– Acho que passarei as férias treinando esgrima com tia Nast, quando ela estivé em casa. Mas ela sempre fica em casa nas férias. Num tenho lugá nenhum para saí, a não sê os mercadinhos perto de casa.

– É bom você ficar em casa mesmo – recomendô. – A cidade é perigosa. Como vai a sua esgrima? Você tem que treinar muito! Pode ser muito útil um dia.

– Claro! – levantei uma peixeira imaginaria com o braço direito. – Poderei um dia percorrê o mundo atrás de aventuras, matando dragões e conquistando tesouros.

Iara ficou em silencio por um tempo.

– Quem sabe – disse ela. – Se treinar muito, talvez uma dia possa me vencer. Também estou ficando muito boa. Meu pai é um ótimo professor.

– Garanto que eu num perderia pra você não – falei. – Já consigo acertá moscas em pleno voo.

– Dragões são maiores que moscas, Davi – respondeu ela.

– As vezes cê me conta essas historias como se realmente acreditasse nelas – falei. – Dragões. Parece até minha tia – de fato, Tia Nast também me contava muitas historias sobre um mundo sobrenatural, mas sempre me deixô entendê que eram apenas historias.

Ela ficô calada. Iara num era religiosa, porem acreditava na existência de muitas coisas.

Sabe Davi, se você soubesse mais sobre você mesmo, pensaria diferente... – começô ela.

Iara parô de falá subitamente. Parecia está tentando escutá algo, mas tudo que eu ouvia era o som dos carros. Ela parecia um coelho aguçando as orelhas pra escutá os passos de um possível predadô.

– Você está com sua peixeira ai? – perguntô ela em tom apresado. Algo parecia preocupá-la. Ela perguntava como se aquilo fizesse todo o sentido. Se eu tivesse trazido a peixeira, ela ficaria bem visível em meu corpo.

– Claro que estou – respondi sarcasticamente. – Até porque, é algo bem comum alunos levarem peixeiras pra escola, especialmente em dias de prova. Que professô daria nota ruim para alguém armado, em?

– Ah! sim... – respondeu ela, como se tivesse falado algo que num devia. – É mesmo. Claro, claro. Eu esqueci...

– Pra quê a pergunta? – perguntei. – Só por duvida mesmo.

– Por nada – ela mentia mal.

Agora o que aconteceu neste momento foi difícil de explicá. Primeiro Iara parô de andá. Começô a olhá em varias direções, tentando achá algo. Neste momento senti aquela estranha sensação de que estava sendo observado e me perguntei se num era isto que Iara tava sentindo, um tipo de instinto. Senti uma pontada e dor em meus braços. E como se algo me mandasse fazê, olhei diretamente pra direita. Do outro lado da rua, havia um homem. Na verdade havia muitas pessoas, mas este homem em especial olhava pra mim. Possuía cabelos longos e negros, era alto, com uns dois metros, ou quase isto. E quase na mesma hora que olhei pra ele, ele sorriu como um maníaco. E com um único pulo, ele atravessô a rua, caindo bem na nossa frente. Neste momento, cai pra trás e vi Iara girá a argola do anel de seu dedo indicadô direito, e então uma peixeira surgiu em sua mão. 

O CHAMADO DO CARCARÁOnde histórias criam vida. Descubra agora