Prólogo: A Arte de Afogar-se em Mágoas

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Eu não conseguia me lembrar de muitas vezes em minha vida na qual quisera machucar alguém. Desde que saíra nessa aventura em alto-mar, porém, esse desejo repugnante se fazia presente com uma frequência que eu não gostaria de admitir. E, mesmo diante de todas as vezes em que eu me encontrei não querendo nada mais do que atravessar uma espada pelo peito do objeto de minha raiva, nenhuma dessas ocasiões se comparava ao que eu sentia enquanto observava os olhos azuis da Dama do Mar à minha frente.

– Eu salvei vocês três, pois vocês me salvaram, mas não me julgue por não sentir qualquer obrigação de salvar aqueles que me tiraram de minha casa e me acorrentaram em um navio. – Ela declarou em resposta à minha acusação, suas palavras ditas em um tom tão calmo que parecia discutir algo tão trivial quanto o clima, mas era imperdível o toque de amargura que jorrava em conjunto do som de cada uma das letras. – Eu não lhes devia nada, tampouco pretendo dar brechas para que alguém se aproveite de mim. – Minhas mãos se fecharam em punho de forma involuntária quase imediatamente a ela terminar de falar. Talvez pela forma como dissera, ou mesmo pela ideia em si. Não era de muita importância. Não diante do que ela havia feito.

– Sua conduta egoísta vale a vida de tantas pessoas? – Indaguei, e o som de minhas palavras, a forma trêmula com a qual foram emitidas, era desconhecido até mesmo aos meus próprios ouvidos. Não era característico que eu me sentisse dessa maneira, como um espectador às minhas próprias ações involuntárias. No entanto, a probabilidade de que eu me arrependesse de fazer algo a ela em um ato de impulso era insignificante, pois, no final das contas, a atitude dela me custara muito.

Ela havia se recusado a salvar pessoas inocentes por um motivo tão fútil e irrelevante que eu sentia todo o meu corpo tremer em ira.

– Sim. – Ela sorriu, um sorriso de dentes brancos e perfeitos que carregava uma forma doentia de satisfação. Se meu corpo não estivesse tão pesado, tão fatigado, eu provavelmente teria me levantado e corrido até ela, teria atravessado as ondas constantes, teria arrancado aquele sorriso de seu rosto. – Como eu disse, não dê às pessoas a brecha para que se aproveitem de você. Se não for sua obrigação, você não precisa ajudar. – Suas palavras cínicas soaram tanto como um conselho que eu senti meu estômago revirar-se em náusea.

– Isso parece uma visão extremamente egoísta. – Se ela esperava que, em algum momento de minha vida, eu agisse da forma com a qual ela havia agido, certamente não me conhecera muito bem no curto período que passamos juntos. De mesma forma, eu não a conhecera muito bem, pois, se houvesse, jamais a teria libertado, jamais a teria salvado do destino que Rider e Avery quiseram lhe dar.

– Foi o que o mundo me ensinou, garoto. – Ela deu de ombros, em um ato de indiferença tão óbvio que me fez querer gritar. Porque, no final do dia, ela não parecia se importar com as vidas que havia deixado para trás, com as mais de vinte pessoas cuja vida ela não salvou. – Você não pode me condenar por isso. Eu te trouxe até aqui. Sinta-se grato. – Deveria eu sentir-me grato por ela ter abandonado pessoas que me eram importantes para a morte? Talvez eu jamais fosse conseguir sentir-me assim, mas não parecia valer à pena continuar a discutir com ela. Arielle não iria mudar de ideia, tampouco eu iria.

Portanto, tentei focar em outro detalhe, algo para tirar a minha mente do sentimento de traição que me perfurava a cada momento que eu olhava nos olhos azuis da mulher que, como tantos outros que eu havia conhecido, tirara algo de mim. Ela me tirara amigos, pessoas que eu admirava e respeitava, para uma morte cruel, para afogar-se em um oceano violento, para que a água enchesse seus pulmões até que os sufocasse e sua consciência e sua vida se esvaíssem.

Isso era algo que eu jamais conseguiria perdoar.

No entanto, quando meus olhos pararam nas duas figuras inconscientes sobre a areia fofa, veio a percepção de que não era em minha mágoa que eu precisava focar. Havia outras prioridades, pois, embora a maior parte da tripulação do Vendaval Eterno não houvesse sobrevivido, nós três ainda estávamos aqui, e eu precisava descobrir uma forma de manter isso assim.

– Onde é "aqui", exatamente? – Questionei, olhando em volta pela praia deserta. Não me era uma paisagem familiar. Era um lugar quente, o sol escaldante brilhando no céu azul demais de uma maneira que jamais ocorreu em Stronghold. O clima tórrido presente na praia era tão agressivo quando o glacial com a qual eu crescera acostumado, mas de uma forma diferente, de uma forma desconhecida.

Definitivamente, eu estava muito longe de Crownland, muito longe do que, um dia, havia sido a minha casa.

– Witchzend. – Arielle respondeu, ao mesmo tempo em que o sorriso em seu rosto se tornou menos provocativo. Ela parecia quase aliviada pela mudança de assunto, mas eu podia facilmente estar engando. Lê-la era algo difícil. Eu não a conhecia, afinal. Tampouco tinha interesse em conhecer depois do que ela fizera. – Mais especificamente, a região leste, Revlis. Essa praia faz parte do território da cidade de Diamond Port. – Explicou. Encontrei-me assentindo silenciosamente, sem confiar que minha voz não soltaria algo além de insultos e acusações. – Vocês estarão seguros aqui. A rainha dessa parte do reino, Louise Lancaster, é uma boa mulher. Busquem-na e ela lhes ajudará. – Foi o seu conselho. Parecia estar sendo sincera, mas havia sempre a pontada de dúvida no fundo de minha mente. Ela havia me traído uma vez, e não havia nada que a impedisse de fazê-lo novamente. No entanto, ela ainda nos trouxera aqui, ainda nos salvara do naufrágio, e não parecia ter nada a ganhar mentindo para mim nesse momento.

Portanto, meneei com a cabeça, mas não fiz mais do que isso. Mantive-me a observá-la atentamente, sua expressão de absoluta calma e serenidade, os olhos azuis que não carregavam qualquer vestígio de culpa, o sorriso que mantinha com uma facilidade que não devia ser de uma pessoa que largara pessoas inocentes para uma morte terrível.

– Você não sente qualquer culpa? – Indaguei então, quebrando o silêncio existente entre nós, o silêncio opressor que era quebrado apenas pelo vento e pelas ondas do mar. Ela, porém, meramente arqueou uma sobrancelha, como se não houvesse entendido. – Por ter deixado todos eles para a morte, eu quero dizer. – Não havia a necessidade de explicar, afinal ela sabia a que eu me referia apesar de fazer-se de desentendida, mas o fiz mesmo assim.

Arielle me observou silenciosamente por vários minutos, como se estivesse decidindo o que ou como dizer. Finalmente, após o que pareceu tempo demais, ela voltou a falar.

– Minha consciência está limpa. Eu fiz apenas o que me cabia fazer. – Ela respondeu com simplicidade, como se aquele não fosse um assunto grave, como se fosse algo que não valesse à pena ser discutido. Uma mera trivialidade.

Olhar para ela não fazia nada além de provocar-me sentimentos ruins, portanto eu fechei os olhos. Fechei os olhos com força, como se, quando os abrisse novamente, eu estaria de volta no navio, com as pessoas com quem convivi por tanto tempo, todos nós em busca de um sonho que jamais havia sido alcançado por qualquer outro. A ardência das lágrimas já havia se tornado conhecida, bem como a umidade que deslizou por minhas bochechas sem a minha permissão.

Quando abri os olhos novamente, ela ainda estava lá, olhando para mim como se eu não estivesse me desfazendo à sua frente. Por esse motivo, eu talvez jamais fosse me arrepender das palavras que passaram por meus lábios logo em seguida.

– Eu devia tê-la deixado morrer naquele navio.

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