Caverna

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Rodrigo abre os olhos e acorda da própria vida, não sente nada, não dor, não frio. Senta-se e olha ao redor: sua visão envolvia não somente o perto e o local, tampouco parte da megalópole e o continente, mas ainda mais: o globo terrestre como um todo, a vizinhança do sistema solar, o braço da via láctea e o grupo local; o universo observável; além.

Agora perdido em outro plano da realidade, vagava pelo espaço profundo, pelas leis universais e imutáveis. Se perdia no infinito e no sempiterno.

– Daqui a cerca de cinquenta ou sessenta gerações as pessoas terão esquecido grande parte das questões históricas e políticas que nos preocupam. A corrida espacial será distante, tanto quanto a segunda diáspora grega. O panorama geopolítico terá se transformado, não será meramente local, mas global. A ciência de agora será estranha e primitiva. – Soava a voz de Átropos como um eco distante dentro da vasta mente de Rodrigo.

A boca se escancara, os olhos arregalam e lágrimas doloridas lhe escapam novamente.

– Me deixa em paz! Me deixa em paz! Me deixa em paz! – Ele grita com a voz trépida, é levado pelas águas agitadas do mar infinito, pela correnteza forte e desgovernada. Porém, estranhamente organizada e absoluta.

Eternidades se passaram com ele gritando no não-lugar.

Ergueu o olhar e procurou Átropos. Viu as realidades reagrupadas lado a lado, uma estranha superposição de fotografias que se movimentam. O céu múltiplo e pontilhado de estrelas, o espaço permutando de preto à azul, à roxo. Não viu Átropos.

– Nesse futuro, no entanto, o desejo de conhecer melhor o nosso lugar na existência do universo, de empurrar as barreiras e caminhar mais adiante permanecerá. – Fez uma pausa misteriosa – Embora a espécie humana permaneça a mesma, ela terá mudado. Terá muito de suas forças e pouco de suas fraquezas, será mais capaz, mais inteligente e melhor. O futuro distante parece uma porta aberta, onde cada problema terá sua solução, onde cada questão terá sua resposta. – Ela fez uma pausa maior dessa vez, o ar de mistério, embora pareceu aumentar, pareceu clarear mais a mente de Rodrigo. Não mais precisaria pensar na inutilidade da existência, no tédio e na náusea. Tampouco precisaria renunciar sua vida em algum ritual autodestrutivo.

– É um surto? Eu estou ficando louco de novo?! Que porra é essa?! Pára de falar na minha cabeça, me deixa em paz!

– Você precisa entender que as tecnologias têm nos libertado, não mais do pó ao pó, mas sim do pó para além. A morte não é o fim, Rodrigo, eu não me suicidei por sentir que não havia mais sentido, mas porque havia uma esperança, a realidade é um grilhão, o corpo é um fardo pesado que nos impede de evoluir, em outras circunstâncias, no passado, obviamente ele foi útil para nos fazer caminhar até aqui. Mas agora... – Pausou – chegamos a um limite, precisamos abandonar a carne e seguir em frente.

Ele deu socos na cabeça, socos no chão, apertou os olhos, as orelhas... pânico.

Eternidades se passam... o quadro da existência permanece imutável para sempre em um único segundo eterno, o não-lugar de possibilidades eternas, as estrelas e o braço da via láctea permanecem imóveis no céu. Ele respira... respira...

– A morte é o "acordar" da vida? – Perguntou o jovem, já calmo e pensativo.

– Vou te contar uma história: ao que parece, cada período da história tem a sua própria metáfora com que conceber a natureza básica do universo. Além disso, essas metáforas incorporam sempre uma realização artística ou tecnológica de suma importância para esse período. Vou explicar. – Deu uma pausa para que Rodrigo se manifestasse se necessário, o que não ocorreu, e então continuou – Um importante cientista milenar, conhecido como pai da ciência moderna, concebeu o cosmos como um livro aberto a todos e à espera para ser lido. A edição e a impressão de livros eram realizações de alta tecnologia em sua época. Em meados do século XVIII um jurista italiano concluiu que o fator mais importante por trás da emergência da Europa de uma idade das trevas não foi a alta eficácia de governantes melhores, nem de leis e de juízes melhores, mas sim a arte da impressão, que faz do público o guardião das leis, e não de alguns poucos indivíduos. O mesmo vale para a catalisação do nascimento da ciência moderna. O cientista recebeu o difícil papel de censurar uma obra importante, mas foi bem sutil e o fez com muito cuidado para que as correções fossem feitas de modo a deixar bem claro o texto original. Quanto ao livro do universo, escrito em forma de fórmulas matemáticas e ideias lógicas e concisas, que rastreiam o movimento das estrelas e planetas, civilizações e suas revoluções, ele percebeu que nenhum subterfúgio era realmente necessário: o texto universal estava escrito na própria realidade, nenhuma rasura ou acréscimo seria possível, quaisquer fossem os decretos de censura de Roma. – Fez uma outra pausa para que ele a acompanhasse.

Ela repetiu mais mil vezes essa fala.

Em cada vez ele sofreu menos para aceitar e compreender, movia os lábios com sutileza, como se repetisse as ideias mais importantes. Parecia surpreso e intrigado.

– Espera! Espera! – Disse enquanto fechava os olhos e batia na cabeça com as duas mãos. – Eu morri! – Olhou para cima e girou, girou em si mesmo, até cair. Fechou os olhos e apertou a cabeça. Ficou em posição fetal.

Cerca de vários anos se passaram. Continuou estranho.

Após cinco anos Átropos retomou o raciocínio:

– Para o cientista o universo era um livro, que refletia a real importância da impressão e da publicação para a disseminação de ideias, pensamentos, teorias e descobertas científicas. Em uma era anterior, gregos pensavam no universo como composição musical, refletindo a importância das leis matemáticas envolvidas na música, aspecto mais característico de sua cultura...

– Pára com isso! Pára!

Átropos apareceu abaixada em sua frente.

Ele tirou as mãos do rosto lentamente, os olhos molhados, a interrogação na face.

– Me explica o que está acontecendo?

– Para uma era posterior... – Continuou Átropos do ponto onde tinha parado. – na era do pensamento científico clássico, o cosmos era um relógio, marcando os eventos no tempo absoluto com uma precisão perfeita. Vamos arrastar o raciocínio para nossa época atual: a mais elevada realização tecnológica é a fabricação de softwares e hardwares. Portanto, não é surpresa que os pensadores se referem ao universo como uma espécie de computador absoluto e supremo, funcionando como um sistema operacional muito bem elaborado por uma inteligência superior. – Átropos falava como uma especialista no assunto, sua voz, sempre em alto e bom tom, sempre na hora certa, respeitando as vírgulas e os pontos, com a entonação adequada e persuasão bem afiada.

– Onde você quer chegar? Que nosso universo é uma máquina bem elaborada? – Ele perguntou cento e cinquenta anos depois.

– Sim, e não só isso, as leis físicas e imutáveis são os códigos e os algoritmos para seu total funcionamento. Talvez você tenha se perguntado por quê o universo é favorável à vida. A resposta são as leis da física, foram escritas para que houvesse vida, e que essa se desenvolva até níveis avançados de inteligência. E talvez você tenha se perguntado qual é o limite para a tecnologia.

– Estávamos em uma espécie de programa de computador? – Sua personalidade de Rodrigo começa a se desfazer.

– Sim...

– Acordamos? Quer dizer, quando morremos acordamos?

– Sim... Deixe-me continuar. – Disse Átropos. – A reposta é que o limite da tecnologia é o limite da própria física, e para tirar o peso do fardo existencial, que você possa ter encontrado em pensar que estamos presos nesse universo e que morreremos com ele, eu lhe digo que a física fora construída para que houvesse a inteligência avançada e que também desse uma brecha para que novas leis se derivassem dela. Você poderia pensar que a lógica é convergente, fechada em si mesma, ela o é, mas ao mesmo tempo, há uma propriedade de divergência, onde novas lógicas possam existir dela. Há uma dualidade lógica.

– O universo foi construído por outra civilização? A vida era uma simulação e nós saímos dela quando morremos?

– Sim e sim. O universo onde eu e você estávamos fora construído. Parafraseando Platão, estávamos amarrados dentro de uma caverna olhando apenas as sombras projetadas na parede. A vida era a corrente que nos mantinha presos olhando para o fundo da caverna. A morte libertou-nos. Nossa "alma" seguiu para fora da caverna e...

A pausa foi grande dessa vez. Átropos segurou as mãos de Rodrigo e tirou novamente da sua face, as ergueu e levantou junto dele.

– Eu te apresento o verdadeiro sol! – Apontou para o céu.

Eis que toda a realidade se desmembrou e desfez, o filme de fotografias sobrepostas que estava sendo reproduzido sumiu; tudo se tornou branco e uma estrela brilhou forte, na cara de Rodrigo. Sua visão ficou turva e incandescida pela luz intensa.

A libertação é dolorosa.

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