Capítulo I: Da janela do Ônibus.

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Sentando, percebo o tempo passar, as várias paisagens nesta velha cidade de Salvador. Vejo os rostos em seus corpos, essas mesmas carcaças que surgem andando, em suas vidas de morto. Sobreviventes do dia a dia, nenhum deles está realmente vivo. E nos rompantes do dia a dia, vejo as janelas dos olhos abertos, que se desviam de qualquer olhar interessado, são várias almas com medo de serem lidas, com um grande medo de serem decifradas. Todos eles algozes de suas próprias alegrias, sacrifícios vivos de suas seitas pessoais. Todos eles estão munidos de punhais de julgamentos, desprovidos de juízo ou consciência, precários em tudo que não a vontade de julgar.

A paisagem muda, diferentes pessoas iguais surgem e nessa discordância de palavras eu encerro este curto diálogo interno, peço o ponto, desço do ônibus e me transformo em mais um na paisagem, pré-julgado como eu pré-julguei.

Sigo calmo e concentrado, caminhando com matanza tocando nos meus fones, quase sem olhar para os lados, a correria do dia a dia... espera, correria? Pessoas correm a minha volta, removo os fones e escuto os gritos, presto atenção, homens e mulheres no chão sendo atacados por outras pessoas com olhos amarelados e com as peles visivelmente mais pálidas, eles mordem, arranham, partem. Como nos filmes que meu irmão assiste, como naquele livro que ele me emprestou, meus membros estão completamente congelados e eu não consigo pensar no que fazer, nem mesmo consigo correr, um deles se aproxima de mim, até que...

Eu acordo assustado, ouvindo aquela música que tanto gosto, Tempo Ruim de Matanza e com aquele bendito livro de zumbis, Terra dos mortos aberto em meu colo, olho para o lado e percebo que passei dois pontos de onde eu deveria descer, me apresso e desço do ônibus, corro como um maluco para chegar no trabalho a tempo, até porque, por mais que não goste de trabalhar na Dinu's Calçados, é essa bendita loja de sapatos que garante o meu aluguel pago todos os meses, desde aquela conversa com meus pais, mas isso não é algo que eu precise lembrar agora, à sim, eu esqueci de dizer, mas meu nome é Iago.

Consegui chegar a tempo, na verdade melhor do que a tempo, no susto com o pesadelo e o fato de ter perdido o ponto, acabei esquecendo que saí de casa mais cedo hoje. De qualquer modo, fui para os fundos da loja, peguei minha farda que estava na mochila e coloquei minha camisa em cima de algumas caixas, para que estivesse seca na hora que eu fosse para casa como sempre às 20 horas. Trabalhar todas as tardes das 13 às 20 horas, de segunda a sábado na 7 portas não é ruim, o salário não é alto 1,300 reais, eles pagam transporte, assinam a carteira, dão um auxílio mixo de alimentação e o plano de saúde é uma bosta, mas é o que me sustenta hoje, meu irmão com aquele vlog dele sobre zumbis consegue uma grana também e nunca atrasa a parte dele no aluguel, por isso não posso fazer corpo mole.

Bati o ponto às 12:50 cumprimentei Elisa e Aline como de costume, elas são as outras vendedoras, Elisa é loira e mediana, já Aline é negra e baixa, com um sorriso perfeito, André estava para poucos amigos, aquele principezinho depressivo, com cabelos cacheados e olhos claros. Após os cumprimentos comecei a atender, hoje é uma quarta-feira de abril, o tempo está aberto, mas como é de costume hoje vai ser um dia de baixo movimento e mesmo assim tudo que eu consigo pensar é que daqui a alguns dias é dia primeiro, novo salário, com todos os sapatos que eu vendi, devo receber mais de 1000 reais só em comissão, vou ter dinheiro pra refazer todo meu estoque de remédios e fazer uma reserva para comprar algumas balas nas próximas raves, comprar aquele fone novo, ou simplesmente gastar tudo em vodka saindo todos os finais de semana, ainda não tenho planos para o extra, mas o salário já está completamente planejado, inclusive aquela parte que irei guardar e o dízimo, por mais que eu tenha sido expulso da igreja todos os meses doo aqueles parcos 130 reais, para a instituição de idosos de Salvador.

Entre meus pensamentos desencontrados, meu expediente seguiu normalmente, até que um rapaz negro e forte entrou na loja seguido por mais dois outros menos robustos, o primeiro era careca, seguido por um que usava moicano e um terceiro que tinha cabelos cacheados e aparentava ser tímido. Eles entraram na loja, passaram por Elisa e Aline seguindo em minha direção e assim começa o primeiro diálogo que merece ser descrito por um motivo o qual vocês ainda não irão entender.

Livro I - A Magia. Trilogia Mundo em Chamas.Onde histórias criam vida. Descubra agora