Era agosto de 1892. O outono chegara e os pastos verdes de Paris estavam cheios de lírios e tulipas de todas as cores. As folhas começavam a se camuflar com o céu amarelado e uma fina camada de neblina preenchia o ar. O vento tocava suavemente o cabelo de Beatrice enquanto ela estava abaixada observando curiosamente algo que chamaria de Bichinho Novo. A brisa estava cada vez mais impactante e senti minhas bochechas corarem sutilmente.
-Beatrice, querida! Venha vestir sua capa!
Enquanto vinha correndo, peguei-me pensando em como minha filha era linda, e se teria de enfrentar os mesmos desafios que enfrentei.
Seus compridos e acobreados cabelos se chacoalhavam à medida que ela corria. O vestido amarelo com estampa de flores a deixava impecável.
Beatrice interrompeu meus pensamentos:
-Sim, mamãe. -Eu a encarei por uns segundos, e sorri.
-Mamãe? -Ela virou levemente a cabeça para o lado e sorriu.
Tinha acabado de perder o dente da frente.
Quando a toquei, estava lívida e fria como um cadáver. Suas sardas vermelhas se destacavam em meio à brancura de seu rosto, como o de uma boneca de porcelana. Seus grandes olhos verdes cintilavam com o lago cheio de flamingos detrás dela.
-Oh céus! Você está gelada, Beatrice!
Vamos para casa, está bem? Começou a esfriar muito.
Ela assentiu com a cabeça e correu para se despedir do Bichinho Novo.
Pus minhas luvas, descruzei as pernas, e dei a mão para Trice.
Atravessamos a praça observando belas moças com lindos arranjos de flores, as senhoras alimentando os pombos e o lago com flamingos. Ao nos aproximarmos da grande torre, Beatrice rodopiou em seu pé, contornando-a e levantando um dos braços, deixando eclodir uma risada deliciosa.
Sorri retribuindo o sorriso que ela me lançou.Ao chegarmos em casa, preparei um chá com biscoitos enquanto ela se banhava. Liguei para Eleonor.
-Bonjour! -Ela disse cantarolando como sempre. -Quem gostaria?
-Catarina, Eleonor!
-Oh, sim! Perdão, Cathe! Não reconheci sua voz. Está bem?
-Estou.
-Algum problema com Beatrice? Louis a descobriu?
-Não, nada disso! Valha-me Deus, mulher! Não diga isso!
-E então...
-Quero mandar uma carta à Ian. -
Um som veio do quarto de Beatrice.
-Beatrice! -Gritei, tampando o teléfono.- O que houve, meu bem?
-Nada, mamãe! Foi só Clarissa, esta danada. -Ela gritou.
-Não fale estas palavras, Trice!
-Catarina? -Eleonor retomou do silêncio-
-Oi, estou aqui. Venha me ver. Vou ver o que Beatrice aprontou. Desconfio de que "nada", seja uma desculpa para me prender aqui.
-Não seja desconfiada, Catarina! Se ela diz não ter feito nada, é porque não fez nada.
-Não me dê lições de como criar Beatrice, Eleonor. Você não a conhece. Neste ponto, ela é como Louis. Tão misteriosa... Tenho medo de... Ah, deixe para lá.
-Me espere. Prepare chá.
-Colocarei Trice para dormir. Assim poderemos fumar em paz.
-Está bem, Catarina. Bisous!
-Bisous.
Subi até o quarto de Beatrice e a encontrei desenhando.
-Está tudo bem, meu amor?
-Sim, mamãe.
-Não me lembro de ter me pedido para rabiscar, Beatrice.
-Desculpe. Você estava no teléfono.-
Me aproximei da escrivaninha, e abaixei-me para ver o desenho.
-Não quis atrapalhar.
-Tudo bem, Trice. O que rabiscou?
-Desenhei o Bichinho Novo, mamãe. Veja quantas patas!
-Minha nossa, querida! É lindo! -Pus as mãos no rosto e arregalei os olhos.- Beatrice, acho melhor dormir um pouco. Você deve estar cansada, meu bem.
-Não estou, mamãe.
-Mas eu estou. Madame Eleonor vem para cá.
-Tia Eleonor! -Ela levantou os braços para o ar. -Por que não posso vê-la, mamãe?
-Só quero que descanse. -Apaguei o abajour e fiz sinal com a cabeça apontando a cama.
-Mas mamãe! -Ela embargou a voz.
-Trice. -Estremeci, encerrando a insistência.
Ela se levantou relutante e deitou.
-É melhor assim, querida. -Dei um beijo em sua testa, e a cobri.
Sentei-me na cama e acariciei seus cabelos até que pegasse no sono. Observei seu rosto com carinho, pensando na obra de arte que eu tinha trazido ao mundo. Pensando se realmente eu era tão bonita quanto minha filha, se todos os que diziam "Oh, céus! É a sua cara!" estavam certos. Sempre fui uma jovem atraente, marcada por uma beleza diferente, como a de Beatrice. Era caracterizada como a mulher mais bela de toda Paris. Atraía olhares por onde passava, com meus cabelos cor de ferrugem, meus olhos cor de mel, uma palidez curiosa. A alta sociedade de Paris me achava bela. Perguntavam-se de onde vinha tanta beleza, comparavam-me à um anjo. Na Escócia, minha terra natal, aos dezesseis anos na flor da idade, chamava atenção por onde quer que eu passasse. No início isso era ótimo, adorava ser tão bela, ter quem queria sob meus pés. Ver homens de todas as belezas, com todo o luxo que eu poderia querer, correndo atrás de mim. Gostava de jogar meus longos cabelos, exibir meu glamour. Até que isso se tornou repugnante, algo de um nojo sem fim. Cheguei em casa em 1875 e deparei-me com os cobradores de impostos escoceses. Lembro-me da cena com muita clareza. Minha mãe chorando, inconsolável. Meu irmão segurando-a enquanto meu pai tentava negociar a casa. Os soldados lhe jogaram ao chão, como um cachorro. Ao me ver, um deles exclamou: "Como alguém tão pobre e tão ignorante, pode gerar uma divindade como esta?" a humilhação me alcançou, senti o sangue ferver e prometi que nunca mais, não importasse o que eu tivesse de fazer, veria minha família naquela pobreza, naquele caos. Na mesma noite, saí para dar uma volta. Até que um homem apareceu. Um homem que me arrependo amargamente de ter conhecido.
Estava sentada próximo à um lago, em meio à escuridão. Tive medo quando ouvi seus passos e quando ele chegou perto, fiz guarda, evidenciando meu medo.
-Se tentar algo, juro que grito!
-Acalme-se, jovem! Não tentarei nada que não queira. -Ele tinha uma aparência rica, marcada pela elegância de um nobre.
Depois de me certificar de que o lindo homem não tentaria nada, me aquietei. Começamos a conversar, o que durou horas. Antes que me desse conta, estava beijando-o. Uma sensação que eu nunca experimentara. Ele acariciou meus cabelos, com o mesmo carinho que eu estava tocando os de Beatrice.
-Qual o seu nome? -Mesmo conversando por horas e expondo sentimentos nunca expostos, ainda não havíamos nos apresentado.
-Catarina Vaikk.
-É um prazer, Catarina Vaikk. Sou Danilo. Das ilhas escocesas. -Ele sorriu, e vi o quanto era bonito. Mais ainda do que eu já tinha visto qualquer vez na vida.
Nos beijamos com fervor, como se o mundo fosse cair aos nossos pés. Senti um fogo percorrer todo o meu corpo, com uma intensidade nunca antes experimentada. Quando dei por mim, estávamos numa cabana, no meio do campo. Uma lareira acesa, o perfume de lindas rosas. Uma cama desarrumada. Eu nua. Ele acariciando meus seios. Não sei se consenti que aquilo acontecesse, mas sei que foi ótimo. Não me lembro de nada antes de sairmos de perto do lago, até o momento em que ele tocava meus seios.
-Você gosta? -Ele beijava meu corpo.
-Eu adoro. -Gemi, agarrando seus cabelos enquanto ele se aproximava de minha vagina.
Percebi que acabara de perder algo muito assustador: minha virgindade. Quando dei por mim, os sentimentos vieram à tona. Medo, angústia, pavor. Tudo o que poderia ser dito à meu respeito. "Vejam, uma meretriz!" (E olha à que ponto cheguei).
Sempre fui impulsiva. Fazia. Não me preocupava com o que falariam. Não entendia o porquê de mulheres não terem o acesso tão desejado à educação. Sempre fui muito inteligente, dona de uma personalidade geniosa, curiosa, cheia de perguntas.
Peguei no sono, e quando acordei, Danilo não estava lá. Tinha ido embora. Deixou um saco de moedas junto de minha roupa, e se foi, como se eu fosse nada. Um inseto. Mais uma. Me senti a pior mulher do mundo por ter caído na lábia de um troglodita. Vesti a roupa e as lágrimas marcaram meu rosto. Minha palidez virou vermelhidão, meus olhos inchados. Fui para casa e dei o dinheiro na mão de mamãe. Ian me olhou desconfiado, provavelmente perguntando-se de onde saíra aquele dinheiro. Tomei um banho no rio, e pensei no quanto seria bom ter uma vida rica, cheia de luxos, ser uma mulher de bens. Pensei no quão fácil foi ganhar aquelas míseras 20 moedas, embora fosse doloroso e humilhante. Pensei se estaria disposta a dar um futuro melhor à minha família. Pensei na promessa de nunca mais ver minha amada família chorar pela pobreza. Virei o que sempre temi: Uma prostituta. Me vendia para homens ricos, que insistentemente voltavam hipnotizados pela minha beleza. Encontrava-me com eles na cabana que ficou abandonada desde que Danilo me deixara lá. Aos poucos minha vida melhorou. Nossas vidas melhoraram. Comprei uma casa para meus pais, roupas novas... Tínhamos comida. Ajudava as crianças, comprava muitos livros. Consegui comprar tinta para pintar meus quadros. Negociei um piano para tocar. Passei a encarar a prostituição como um trabalho de verdade. Um trabalho fácil e lucrativo, em seu sentido literal. Proporcionei à minha família, um luxo nunca visto. Ajudei muitos do meu vilarejo, e quando começaram a percorrer os boatos sobre meu trabalho, senti-me envergonhada. Queria morrer, mas era uma amante da vida. Uma hipócrita. Não achava que precisasse morrer porque estava dando um futuro à minha família. Nunca me entreguei a homens que não pudessem dar o que eu pedia. E eles sempre voltavam. Quando chegou aos ouvidos de minha família, deixei uma carta para Ian, meu irmão, explicando sobre minha viagem. Pedi para que ele inventasse algo para os nossos pais. Estava determinada, viajaria para a França! Sempre quis conhecer a cidade, aquela era a hora. Marquei com uma charrete. Passados longos 15 dias, chegamos à bela e atraente Paris, onde fiz minha vida. Sempre chamando atenção, atraindo olhares. Conheci um homem chamado Pompeu, dono de um cabaret muito chique, no centro de Paris. Comecei como garçonete, até que a necessidade me alcançou. Estava morando de favor numa vila suja, sem água e luz. Vendi-me de primeira por 50 moedas. Fui leiloada como uma égua, todos me queriam. Provoquei a inveja de todas as meretrizes, que foram substituídas sem pensar. Todos me queriam. Depois de dois anos, fiz minha vida em Paris. Uma boa vida. Tinha uma bela casa, não muitos amigos. Mas vivia confortável. Passei muitas noites na Maison Amusant do senhor Pompeu. Muitas manhãs cheias de dinheiro, tudo do bom e do melhor. Os melhores vestidos, as melhores comidas... O que aquilo me proporcionava materialmente não era fácil. Mas havia se tornado. Cheguei em Paris em 1877, e engravidei seis anos depois em 1883. O pai de Beatrice trabalhava nas ferrovias. Era muito rico. Tinha olhos verdes que até hoje quando a olho, lembro-me de suas feições. Seus cabelos negros, sua pele branca e o olhar provocador. Conheci-o em uma noite no cabaret. Ele havia me dado uma linda pulseira de diamantes e eu estava vislumbrante. Dormi com ele naquela noite. Nunca tinha tido contato labial com nenhum dos meus clientes, até aquela noite. Seus beijos eram quentes e saborosos, sua pele fervendo, beijando meu pescoço e corpo. Beijei-o em todas as partes, passei a língua, sensualmente, e tive uma bela noite. Por um momento tive medo de me apaixonar. Diferente dos outros clientes, ele era cuidadoso, carinhoso, inteligente. Não me tratava como um objeto. Dormimos diversas vezes. Mas, em seu último dia em Paris, tivemos uma longa noite. Ele me pagou 150 moedas de ouro, e eu nunca tinha recebido tamanho valor. Deu-me um colar de rubis que transformei num acessório de cabelo para Trice. Deu-me um beijo na testa e foi embora. Nunca soube para onde viajara. Semanas depois, enjôos me assombravam. Minha barriga crescia. Eu estava grávida. Grávida de um cliente. Alguém que, em hipótese alguma poderia saber disso. Alguém que podia ser casado. Talvez fosse. Eu não sabia se ele a aceitaria. Até hoje me pergunto se ele a aceitaria. Sabia que conseguiria criá-la, mas me perguntava o que uma sociedade tão preconceituosa diria sobre uma mãe solteira. Isto me atormentava, porém não me impedia. Decidi ter Beatrice. Seu pai, Louis Beatric, foi o inspirador de seu nome.
Eleonor sempre foi uma grande amiga, uma confidente. Alguém por quem eu faria de tudo. Ellie me ajudou com Beatrice. Desde o parto, até o crescimento. Beatrice é apaixonada por Ellie. Meus pensamentos se interromperam quando Eleonor tocou à campainha. Trice já tinha dormido, estava com uma expressão de satisfação.
Desci as escadas, meu belo vestido vermelho me delineava. Olhei no espelho do hall, ajeitei os cabelos e abri a porta.
-Catarina! -Ela sorriu-
-Eleonor!
Nos abraçamos como duas pessoas que não se vêem há tempos fazem.
Convidei-a para entrar, preparei um chá, e fomos para a lareira conversar.
-Quer fumar?
-Claro, querida.
-O que tem feito?
-Além de cuidar de Beatrice e ir para o cabaret, nada de importante.
-Não conseguiu trabalho?
-Desde que saí da boutique, não consegui nada.
-Sabe que precisa de um emprego, Catarina. Cedo ou tarde Trice descobrirá. O que pretende fazer?
-Não quero pensar nisso agora. Acho que está cedo, ela nem sabe o que é o meu trabalho.
-Pois deveria se preocupar. Sabe que deveria. Ela é esperta, Cathe.
-Trice acha que o tio está mandando dinheiro.
-Tem falado com ele?
-Não tenho notícias há seis longos meses. Estou angustiada. A última vez que falamos, mandei-lhe 30 moedas de prata.
-Você e sua bondade. Quem foi seu último cliente?
-Ele é meu irmão. Pierre Juan, dono de uma boutique no centro. Pagou 40 moedas. Clarissa, a boneca, foi o investimento dessa vez. Cara nojento-Fiz uma careta e traguei o cigarro, soltando uma longa fumaça - Mas e você, Ellie? O que tem feito?
-Estive com Montesquieu, no interior. Ele seria um bom marido.
-Ele não casaria com você.
-Ele não sabe do meu trabalho.
-Mas vai saber que não é virgem, e uma hora descobrirá sobre seu trabalho.
-Isto só saberá quando se casar.
-Pare de sonhar, Eleonor.
-Está bem, que tal procurarmos um emprego juntas? Também preciso de um disfarce. Pretendo acabar com isso em breve. Não quero mais essa vida, Catarina.
-Nem eu. Estou cansada. Cansada desta vida. Mesmo cheia de luxo, não é o que me faz feliz.
-Se for viver do que te faz feliz, não vai viver. Música e arte não dão lugar para mulheres como nós, meu bem. -Ela cruzou as pernas e virou de lado, para soltar a fumaça do cigarro.
-Acho que consigo viver disso. Por favor, Eleonor, não me subestime.
Sei que foi isso -Dei uma ênfase na palavra "isso" e mostrei uma expressão de desdém- que o destino me reservou, mas vou contrariá-lo. Ele deve entender que sou eu quem manda nele, não ele quem manda em mim. Em nós.
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Confissões de Catarina
ChickLitCatarina é uma mulher bonita. Muito bonita. Sua beleza carrega segredos que ela teme à todo custo, serem descobertos por sua filha. Uma escocesa que leva a vida na bela e atraente Paris. A vida não! As vidas!