God forbid!

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Cinza, fumaça, sangue, rio, trem.

May uma vez prometera; listar aquilo que lhe incomodava diminuía sua tensão. Alionora tentou fazê-lo, mas não notou resultado. Os pés ainda se rebatiam por baixo da saia escura, e os olhos viajavam pelo local. A tensão vencia.

Não era sua culpa, é claro. Já estava acostumada com aquelas situações, mas não deveria. Assim como presenciava batizados e casamentos, a leveza e classe de ambos, precisava lidar com o peso de funerais e despedidas. A igreja era a casa do Senhor; nem por isso, Nora percebera com o tempo, era sinônimo de paz.

Estar naquele específico funeral, porém, significava um pouco mais do que uma simples despedida a um ente de alguém importante da cidade. Era a despedida de um padre. Rickon, o mesmo que ensinara a importância dos ensinamentos da Bíblia à Nora em seus primeiros anos. Era uma tristeza que a garota não apenas presenciava, e sim compartilhava.

Talvez fosse por conta das circunstâncias: um casamento sendo interrompido pela morte do pároco. O padre morreu!, as más línguas ecoaram até que a notícia chegasse aos ouvidos de Nora. A causa era desconhecida, mas por alguma razão todos concordaram em deixar isso de lado e declarar uma fraqueza do coração. A mais básica e menos precisa declaração de causa mortis nas clássicas cidadelas em torno de Purity.

May não parecia incomodada, como era de se esperar. A expressão permanecia serena enquanto alguns fios do cabelo escapavam por debaixo da batina, e apenas para colocá-los novamente no lugar Nora aproximou-se da mais velha.

— Fiz sua lista e não adiantou — uma máscara rancorosa cobria seu rosto no momento em que se dirigiu à acompanhante, mas logo deu espaço para um sorriso discreto.

— É porque está fazendo errado. Diga, o que te incomodas, garota? — os olhos de May sempre apresentavam uma mistura de superioridade e carinho, de um modo que ninguém acreditaria ser possível. A mulher não chegara há muitos meses na igreja, e desde então, não pareceu fazer muitos amigos. Vivia impaciente, mostrando pele demais e interesse de menos para quem deveria ser uma freira. A voz frutada não soava correta quando entoava preces diárias, Nora sempre notara, e as frases prontas pareciam baseadas em mais experiências do que simples dias e mais dias em um convento. Ainda mais depois de confiar à postulante amiga o fato de que por baixo da dura imagem de Irmã Angelique havia a sarcástica e sempre irritada May, sem sobrenome nem explicação.

Alionora sentou no banco de madeira o mais perto possível da outra, sem ter a intenção de falar alto demais na Casa de Deus. Listou em uma voz satiricamente séria todos os motivos de seu nervosismo, enquanto apontava com a cabeça para cada um dos citados.

— Para começo de conversa, May, tudo aqui é cinza. Inclusive nosso padre.

Não era mentira: o defunto parecia mais cinza do que os demais já velados naquela sala, e por alguns instantes, Nora considerou se o sangue que um dia correra em suas veias era igualmente sem cor. Por isso, esse era outro item de sua lista. A Irmã, por sua vez, não moveu o rosto para encarar a mais nova; reduziu-se a mirar-lhe pelos cantos dos olhos, as sobrancelhas erguendo-se em uma dança desconfiada:

— Não estaria tão surpresa se já tivesse visto a luz do dia, senhorita Beaton. São dias cinzentos para uma cidade cinzenta, como se o Sol tivesse desistido de nós.

Era cômico ser chamada assim por aquela que, outrora, mostrava-se ser o exato oposto das demais freiras quando se tratava de discrição. Nora riu. Acreditava na palavra da religiosa, simplesmente por não possuir quaisquer argumentos contra aquilo — jamais vira a luz do dia, o céu acima da imensidão sombria que era aquela fortaleza. Nunca soubera o motivo de estar ali, uma igreja e convento, apesar de crescer acreditando em tudo que lhe era ensinado por todos seus superiores. Estava destinada a ser uma postulante, mas nunca possuiu a chance de escolher fazê-lo. Cresceu temendo a Deus.

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⏰ Last updated: Nov 06, 2017 ⏰

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