Camile

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Assim que entrou, André veio na minha direção.

- Oi, princesa do tio André- ele falou utilizando de uma voz retardada para Gina, que imediatamente abriu um sorriso e estendeu os braços para seu tão adorado e bobalhão "tio André".

- Essa menina está mais gordinha. Que bom que o seu pai não é retardado o suficiente para te dar salgadinhos e coca cola.

- Esse aí será você, André- falou Carlos.

- SE eu tiver filhos. Gatos dão menos trabalho.

- Mas você adora crianças- falei displicente.

- Sim. A criança dos outros. Se eu tenho a Gina, não preciso de outra criança pra ocupar esse lugar. Vão até magoar a Gina se ele perceber que vocês querem que eu troque ela- e voltou a falar com a minha filha com uma voz de criança- Não ligue pra esses dois bobões. Você sempre vai ser a criança do tio André.

Eu ri. Carlos também. Dalva pegou Gina e nós ficamos na sala matando um pouco o tempo.

Como de costume, jogamos videogame com toda a realidade esquecida. André, como sempre, roubando nas partidas.
Quando o almoço ficou pronto, fomos para a cozinha. André trouxera um vinho, o que combina mais com jantar, mas foi ótimo. As qualificações culinárias de Dalva, em soma, eram inquestionáveis.
Na verdade, foram questionadas uma vez. Mas por alguém que não tinha mais nenhuma relevância na minha mente. Alguém que não significava muito pra mim. Alguém que eu resolvi esquecer. Alguém que, por acaso, era a mãe da minha filha.
Bárbara era o nome dela. Eu e ela namoramos durante o último ano do meu curso de música. Ela fazia faculdade de direito e eu sempre ia encontrá-la na saída pra levar pra sair ou só deixar em casa. Estava muito apaixonado por ela e queria que nossa primeira vez juntos fosse especial.
E foi.
Bárbara apareceu algum tempo depois dizendo que estava grávida e não sabia como contar para os pais.
Ainda faltavam dois anos para ela concluir o curso. Ela não trabalhava e nem sabia fazer muita coisa. Bárbara era mais uma dessas burguesas criadas no iogurte. Mas eu já trabalhava. Era estagiário como professor de teclado e violão para crianças da escola de música e só faltava o diploma para receber o cargo de "professor" de classes mais "maduras" que não quebravam cordas ou passavam dedos sujos de catarro nos instrumentos.
Meu pai me deu uma das suas casas- uma das que ele alugava- e eu já tinha meu carro. Ela ia morar comigo e começar a trabalhar numa pequena corretora, mas algo que eu nunca entendi aconteceu.
Bárbara terminou comigo.
Eu não queria que terminássemos, tanto porque eu ainda gostava dela, quanto porque era covardia deixá-la grávida e solteira. Mas a decisão fora sua.
Bárbara morou com sua mãe ainda, mas a mulher tinha uma certa rejeição pela filha estar "desonrada". O clima dentro de casa não era muito bom.
Quando Gina nasceu, meu mundo mudou completamente. Era como se algo realmente bom sempre estivesse à caminho, mesmo que o melhor de tudo estivesse nos meus braços.
Mal saira do resguardo, e Bárbara, quatro meses após o parto, estava namorando o seu ex-namorado, Ricardo. Um cara corpulento, com um físico de lutador de MMA. Era vaqueiro e tratava Bárbara de uma forma indescritível. É complicado dizer se ele era bruto ou sensível de mais.
A questão é que, quando Gina completou sete meses, Bárbara saiu para comprar um leite.
Bem...
Nunca mais ouvimos falar dela ou do Ricardo.
Ela só deixou um bilhete pra mãe dizendo:
" Eu vou ficar bem".
Só isso. Nem pediu para cuidarmos de Gina, ou se preocupou eu deixar um endereço ou um número de telefone. Nada!
Só achou que fôssemos ficar preocupados se ela estava bem.
Minha mãe foi quem mais me ajudou no começo. Não queria que eu saísse de casa. Achava mais fácil me ajudar com Gina se eu estivesse com ela, mas eu achava bom ter meu próprio lugar. Continuei com a casa e, como o salário estava melhor com a chegada do diploma, continuei com uma mulher para cuidar da casa e- assumindo de uma vez- de mim.
Dalva era uma mulher muito especial, e cuidava de Gina melhor que a própria mãe fizera. E a comida dela, repito... Era inquestionável.
Após o almoço, fomos para a sala jogar conversa fora mais uma vez.
Depois, jogamos videogame mais uma vez, até às três horas da tarde, quando contei sobre a moça na minha sala e como eu achava que podia ser uma nova professora e André falou:
- Você está ficando neurótico. Calma, é normal! É estresse por causa da prova. Sabe do que precisamos? Ar puro.
- Nossa, QUE poeta!- zombou Carlos- Quer um prêmio?
- Pode avacalhar- rebateu André- Mas eu estou certo. Vamos sair. Ir ao parque.
Eu olhei para Carlos, que me olhou de volta e ergueu as sobrancelhas.
- Dalvinha, por favor- André chamou- dá uma arrumadinha na Gina. Deixa ela parecendo um bolo de aniversário e enche o cabelo de "fru-frus". As garotas adoram isso.
- Você não está pensando em usar minha filha nas suas canalhices...
- Tô sim.
- Coitada. É só uma criança- falou Carlos.
Em pouco menos de quarenta minutos, estávamos dentro do carro de Carlos em direção ao Jardim Botânico.
Quando chegamos, André saiu do carro levando seu saxofone com sua capa-mochila. Havíamos levado Macaco Louco, o meu golden retriever de dois anos. Eu o havia comprado um pouco antes de Gina nascer.
É estranho chamar o cão de "Macaco". Minha mãe odiou esse nome. Disse que podia ser "Totó", "Scooby", "Marley" ou "Beto". E eu respondi: "Mãe, é por gostar de coisas comuns que meu nome é Luís". Ela ficou toda dramática e disse que devia ter colocado MEU nome de Macaco Louco.
Caminhamos por quase toda a passarela principal do Jardim Botânico. Carlos levava Gina e eu levava o cachorro. André me contava uma série que estava assistindo sobre guerra medieval em que uma rainha dominava todo um exército para defender seu rei.
Eu estava absorto na conversa com André, mas não o suficiente para que algo me passasse despercebido.
Em um banco logo à minha frente e próximo à barraca de algodão doce, usando óculos escuros e foleando um livro, estava Camile.
Eu chamei os rapazes para verem-na e falei que era a moça da qual eu contei.
- Vai falar com ela?- perguntou Carlos.
- Pra quê?
- Você não tá curioso pra saber se ela é professora?- perguntou André- E tem mais. Ela é a maior gata. Se você não for, vou eu.
Olhei para os dois e decidi que realmente tinha de matar minha curiosidade. Se fosse professora, talvez ficasse um pouco incomodada em falar sobre isso comigo, e talvez até mentisse, mas eu saberia a verdade.
Caminhei até ela e parei à sua frente. Ela levantou o olhar da leitura e voltou-o para mim.
- Boa tarde- falou.
- Boa tarde- respondi- Tudo bem com você?
- Tudo bem, obrigada . E você?
- Melhor impossível.
Ela riu e voltou os olhos ao livro.
Eu fiquei confuso. Não fazia tanto tempo que nos havíamos visto e, de repente, ela não lembrava do meu rosto. Mas eu precisava matar minha curiosidade, então a chamei novamente:
- Camile, você talvez não lembre, mas eu sou professor de piano. Eu entrei na sala hoje quando você...
- Oh! Sim. Me perdoe. Eu não quis ser grossa. É que eu estou tão...
- Concentrada?
- Isso- ela abriu um sorriso que tornou seu rosto mais bonito ainda.
Eu sorri também, buscando tempo para palavras virem à minha cabeça.
- Eu queria saber... Você estava fazendo prova para trabalho?
Ela pareceu meio confusa, fechou um pouco o sorriso, deixando apenas o seu rascunho.
- Não- falou lentamente ainda pensativa- Eu vou começar a fazer aulas particulares com o professor Renê. Ele queria fazer um teste para conhecer minha técnica.
Eu tentei evitar abrir um sorriso, mas não obtive êxito. Tentei procurar palavras mentalmente para disfarçar minha alegria ao saber que não serei demitido, então falei:
- Aaa... seja bem vinda, então.
- Obrigada- ela alargou o sorriso.
- Nos veremos sempre nos corredores, então...
- É! Eu acho que sim.
Um homem de meia idade, trajando terno veio em nossa direção e parou um pouco distante.
- Srt. Columb. Vamos?
Ela olhou na sua direção e logo voltou seu rosto para mim.
- Tenho que ir agora. Até breve, senhor...
- Me chame de Luís.
Ela sorriu novamente e concluí que ela era uma garota muito feliz pois vivia sorrindo.
- Até logo, Luís.
Ela saiu caminhando com seu livro e seu cachorro.
Voltei para onde estavam dois caras sorridentes e com cara de safados.
- Calem a boca- falei e Carlos desatou a rir- Ela é só uma aluna.
As gargalhadas de Carlos foram atrapalhadas por André, que ficou sério de repente.
- Saca só. Duas gatinhas dando sopa. A gente vai deixar passar?
- Claro que não- respondi.
- Me dá a criança e o cachorro- ele disse.
- Por favor! Não usa a minha filha- falei com pesar enquanto Carlos entregava Gina.
André puxou a guia de Macaco Louco e saiu em direção à garotas com um instrumento musical, um bebê e um cachorro. Tudo o que uma garota gosta em um cara.
Ele chegou onde elas estavam e conversou por um breve tempo. Em um momento, apontou nossa direção. A garota loira sorriu e sua amiga morena ajeitou o cabelo.
André também ria como se ele dissesse algo engraçado que as garotas gostavam.
Não demorou muito, André voltou sorrindo de orelha à orelha.
- A Catarina deu o número dela para mim- ele disse para Carlos- e a Laura deu o dela para você.
- Ei!- protestei- E quanto à mim?
- Você já tem a sua. A nova aluna gata.
Eu revirei os olhos e nós voltamos a andar.
Até que André não estava tão errado.
Camile era sim uma garota muito linda. Seus sorrisos largos e sinceros lhe davam uma ternura que transmitia paz. E eu agora a veria nos corredores toda semana.

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⏰ Última atualização: Aug 16, 2019 ⏰

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