O tempo trouxe o seu coração pra mim

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"...E o tempo todo acreditei que te encontraria, o tempo trouxe o seu coração pra mim. Eu tenho te amado por mil anos, eu vou te amar por mais mil..."

(A Thousand Years - Christina Perri)

— Papai! Papai! — Matheus pulou na cama e me acordou de um jeito nada delicado. Afinal, quem fica puxando as pálpebras da pessoa para cima, só pra abrir seus olhos? — Está na hora, pai!

— Hora de quê?

— Dos meus desenhos de domingo, papai. — Ele pulava sobre minha barriga animadamente. — Liga a TV, liga, liga!

Rolei na cama e ataquei meu filho com a mão de garra, uma brincadeira que fazíamos, onde o deixava com a barriga doendo de tantas cócegas. Os cabelos sedosos do garoto, que costumavam cair sobre o rosto numa franja engraçada, agora estavam para cima, misturados ao lençol.

— Ai pai... — Ele não conseguia falar de tanta risada. — Socorro! Eu não aguento mais!

— Quem é o rei?

— Eu! — Matheus respondeu bravamente enquanto o atacava sem piedade, com cócegas na barriga.  — Eu sou o rei, papai malvado! Eu sou o rei, pai!

— Quem é o rei?

— Tá! Ai meu Deus! — O moleque gemeu já começando a chorar de tanto rir. — Meu papai do céu... Você! Você é o rei, pai! Pára! Pára... Vou contar pra mamãe!

Um estalo surgiu na minha mente no momento em que ele mencionou a palavra "mamãe"

MERDA!

— Sua mãe! — Gritei pra ele, já saltando para fora da cama e correndo até a cômoda para pegar uma camisa. — Sua mãe vai te buscar para almoçar com seu avô hoje!

— O vovô! — Matheus sabia como Ana ficava brava quando ele não estava pronto na hora, então também pulou da cama e correu para o quarto dele.

Meu filho tinha quase cinco anos de idade, era super inteligente e esperto. Eu não sabia direito o que Ana dava para aquele garoto comer, porque ele parecia desenvolvido demais para pouca idade que tinha.

Aprendemos a seguir uma rotina, já que a guarda do Matheus passou a ser compartilhada um ano antes. Cada semana ele passava na casa de um de nós dois, e funcionava muito bem, apesar de ainda não estar conformado com nossa separação, que em breve faria o terceiro aniversário.

Ana aprendeu a dirigir depois do acidente, para poder me levar aos lugares com maior facilidade, e isso serviu quando passamos a dividir toda a rotina do Matheus de forma igualitária. Como meu trabalho era mais flexível, a tarefa de buscá-lo na escola diariamente e levar à capoeira três vezes por semana era minha. 

Ana o levava para a escola todos os dias, mesmo nas semanas em que ele estava na minha casa. Com isso, acabávamos nos vendo com certa frequência, o que era uma benção e uma maldição.

— Matheus! Tem que tomar banho, filho! — Gritei da porta do quarto.

— Tô indo! — A voz do moleque soou abafada de dentro do quarto. — Rapidinho! Já tô indo!

Em poucos minutos ele passou como um raio por mim no corredor, vestindo apenas cueca e com uma toalha com capuz do Iron Man encaixada na cabeça, o que me fez cair na risada.

— Minhas roupas, papai! — Matheus berrou do banheiro. — Para de ser bobão! Separa as roupas! Coloca meias limpas, mamãe mandou colocar meias limpas! E cueca também!

Matheus tinha duas casas e sabia lidar com isso muito bem. Ana vinha inspecionar o apartamento a cada duas semanas, ver se estava cuidando dele do jeito certo, como se isso fosse realmente necessário. Mas eu gostava de saber que ela se importava. 

Quando vinha até o apartamento, minha ex-mulher abria a geladeira e os armários para saber se tinha comida saudável para o menino, também olhava atrás de cada porta e gaveta do quarto do Matheus para saber se estava lavando as roupas dele do jeito adequado, e se ele seguia a rotina da semana que havíamos estipulado em conjunto para ele.

Estava terminando de arrumar as roupas que ele usaria naquele domingo quando a campainha tocou. Ana tinha a chave, mas fazia questão de tocar a campainha toda vez que vinha ao apartamento. 

Ao longo dos últimos três anos ela tinha sido firme na decisão de me manter afastado dela como marido, mas nem tanto como amigo e nunca como pai do nosso filho. Todo esse cuidado só me fazia amá-la ainda mais.

— Oi. — Ela falou animadamente quando me viu. — O Matheus está pronto?

— Está no banho, nos atrasamos. — Admiti.

— Tudo bem. — Ela disse, deixando um fio de tensão escapar em sua voz. — Posso entrar?

— Não precisa pedir isso.

Dei espaço e ela entrou no apartamento.

— Tudo bem com você? — Perguntei quando notei a agitação em sua atitude.

Ana estava circulando pela sala e tocando em cada objeto que havia por ali, pegou meu troféu antigo de capoeira e o girou entre as mãos, como fez na primeira vez que dormimos juntos, quando ainda éramos amigos.

— Eu tô um pouco ansiosa. — Ela confessou. — Você sabe, meu pai...

— Vai ser um bom passeio. — Peguei o troféu das mãos dela. — Ele não pode machucar você outra vez.

— E o nosso filho? Ele pode magoar o Matheus, pode ferir os sentimentos dele e sumir outra vez.

— Ele não pode mais te abandonar, Ana.

— Por que?

— Agora você tem uma família de verdade pra voltar. — Puxei-a para um abraço.

— A terapia não está me ajudando com isso. — Ana disse com o rosto escondido no meu peito. — Já tem quase três anos que estou lidando com ele, mas não consigo confiar.

— Essas coisas demoram, talvez você nunca mais confie nele outra vez.

— Você é péssimo para dar conforto, sabia?

— Aprendi com a melhor. — Ofereci meu melhor sorriso quando ela me encarou de um jeito divertido. — Lembra do que fez comigo quando meu pai morreu? Curta e objetiva, um pouquinho grossa também.

— Eu te amo. — Ana falou de repente.

Fiquei estático, sem saber como reagir àquelas palavras.

— Eu te amo, você é minha família. — Ela completou. — Ficaria muito feliz se você fosse conosco nesse passeio com meu pai.

Ainda estava processando o "eu te amo" quando ela me bombardeou com outras palavras ainda mais perturbadoras sobre seus sentimentos e anseios.

— Você está certo, eu posso nunca mais confiar nele. — Ela disse. — Mas eu nunca deixei de confiar em você, apesar de todas as coisas ruins e os erros, você nunca me decepciona. Sei que posso confiar que você não vai decepcionar. Você pode demorar, mas você sempre chega lá. Você é o pai do meu filho, é meu melhor amigo e eu te amo.

Ana me encarou irritada.

— Não vai falar nada?

— Eu vou com você. — Acariciei o rosto da minha melhor amiga, da melhor pessoa que existia no meu mundo, da pessoa que eu mais amava no mundo. — Vou aonde você quiser.

Mil anos (Conto de "O bebê do meu melhor amigo")Onde histórias criam vida. Descubra agora