A Cafeteria

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Já é Março. Dia vinte e sete. Poxa vida, tantas semanas depois do aniversário. Tantos anos depois do acontecimento. Tanto tempo. Poxa, quantas lembranças boas, ruins. Mas pouco consigo lembrar do seu rosto. Do seu jeito. Da época em que, mesmo sendo um pouco mais inteligente e curioso que a maioria da minha idade, eu era inocente. Eu era eu, ele era ele. Da época em que nós viviamos juntos na graciosa (nem tanto assim) Cabana do Mistério e que, sem intervenções, curtiamos a vida. Saudades da Mabel daquela época. Do Soos. Nossa, quantas lembranças, meu deus. As vezes a nostalgia magoa demais. Saber que o mundo não é mais o mesmo, que este novo não te agrada. Droga. Tudo que resta é a saudade, e exatamente como as cinzas de uma casa queimada sendo carregadas pelo vento, você pode vê-las zanzando com a brisa da desgraça, lembrar-se da estrutura, sentir saudade do conforto, mas quando olha pro vão desfeito e de toda a destruição que o tempo causou, a vontade de chorar paira. Poucos são os guerreiros que conseguem conter as lágrimas. Um vilão muito poderoso para o mocinho. Um destino que, aos de coração, é inevitável. A morte. A tão superestimada morte.
O piano ressoa por um tempo agradável, uma melodia curtível, e então:

When i find my self in times of trouble, mother Mary comes to me,
speaking words of whiston, Let it Be.
Whispering words of whiston, Let it Be.
When the broken hearted people living in the groomed world, there will be an answer,
let it Be.

Concorde com os Beatles, deixe ser. Não é do seu feitio tentar controlar o tempo, o espaço, retornar ao passado e mudar as coisas que aconteceram. Você não é um Deus, eu não sou um Deus, nós todos morreremos e o que aconteceu vai continuar tendo acontecido. Nem mesmo Austúcio, o Deus do passado que carrega o cordão da memória na mitologia Almateir, conseguiu mudar o tempo e espaço da sua própria vida. Nem ele, o Deus designado a tarefa simples de cuidar para que os humanos não errassem, nem ele conseguiu prevenir que os erros nascessem. E pior, ele não teve o poder de voltar e mudar a história como ela foi. Não vai ser você, não serei eu. Não será, já foi.

- Esse é o seu chá, Sr. Pines. - A garçonete disse, estendendo a xícara na minha direção.

Eu sorri pra ela, sem graça por não ter ouvido a primeira chamada por causa dos fones de ouvido, e me desculpei. Aceitei a xícara, a toquei com uma cautela bastante elegante. Digno de um mero mortal ciente de que a sua existência é tão frágil quanto aquela xícara. E que o responsável por manter-me vivo, seja ele quem for, tem a mão trêmula. A minha xícara pode cair a qualquer momento, mas essa aqui, a que contém meu chá, eu não permitirei que se parta.

- Obrigado. - Me limitei a dizer. Quanto menos, melhor.

Ela ficou de pé ao meu lado, um tempinho, como se esperasse um cumprimento a mais. O sorriso não apagou do seu rosto, me virei, depois de ouvir mais um bocado da música na pura ignorância de não a ter percebido ali, e perguntei o que tinha de errado. Claro, mantive a dinasta elegância do sorriso recíproco no rosto.

- A gorjeta, Sr. Pines. - Ela disse, estendendo agora, invés da xícara, a mão.

Deixei uma risadinha escapar. Não foi pra ela, apesar de ter achado. Enfiei a mão no bolso do moletom, discreto o bastante pra não deixar a carteira lotada de doláres e levantar suspeitas, e entreguei cinquentinha na mão mácia de loção de maçã. Sorri mais um pouquinho, quase tinha dores nas bochechas. Ou caimbrãs. O que sorri naquele café, não havia sorrido na vida.

- Me desculpe de novo, estou disperso. - Eu disse, pouco tímido.

Ela agradeceu a gorjeta e, depois de tocar o verdinho da nota, não deu mais atenção pro meninão de óculos e fones de ouvidos desligados aqui. É, fazer o quê. Nunca foi um talento meu desenhar os mapas para o caminho mais rápido do ziper da calça de uma mulher. Não vai ser agora, passado a fase das taradisses, que vou aprender. Aprendi, na verdade, a superar esse tipo de situação. É somente necessário pensar em alguma outra coisa, algo importante, ou pelo menos mais importante que o instinto primórdio de se reproduzir. E eu tenho bastante do que pensar..
Deixei escapar outra risadinha, igual aquela lá encima, quando ela pediu gorjeta. Mas agora eu digo que a risadinha que deixei escapar foi por causa de uma lembrança, outra para a coleção nostálgica da noite, do meu tio avô. Lembro muito bem dele dizendo que os homens dessa família estavam destinados a serem chulos. Há um significado pra essa palavra em algum lugar, isso é certeza. Ele não inventou-a. Mas o significado dela em sua boca era outro, era um pouco menos romântico e acessível que os outros. Era algo como "nem rico e nem pobre", bem perto da felicidade, mas também, próximo demais da tristeza. Seria tipo um anão no topo de uma escada gigantesca com o bracinho bem esticado para tocar o arco-íris. Ele está a centímetros, não vai chegar lá por ser pequeno demais, e ao mesmo tempo, por estar no topo de uma escada alta o bastante pra chegar perto do arco-íris, está também perto da tristeza. Um movimento em falso e tudo pode desabar. Assim seriamos nós, os Pines. E assim fomos nós.

Times of trouble.

"Tempos de problema", seria a tradução literal dessa parte. Mas, para nós, poderia ser descrito ou traduzido como "os baixos da vida". E é nessa época que mais ficamos vulneráveis, segundo a letra dessa música, para o cantor, é a época em que a Mãe Maria chega ao ouvido dele e, com uma voz angelical acalmante, sussurra que é preciso deixar acontecer. Um "esqueça", "supere", só que de um jeitinho mais eufemizado.
Estou em tempos de problema, Mãe Maria. Venha sussurrar em meu ouvido.

- Whispering words of whisdom.. - Eu sussurrei a música enquanto apreciava meu chá.

Let it be (Deixe ser).

No computador em que digitava um relatório, algo sobre um caso antigo que já foi resolvido por mim e pela minha irmã, pesquisei o nome do meu tio avô. Muito me surpreendeu, primeiro, achei algumas coisas sobre a cidadezinha. O de sempre, estranhezas. Coisas bizarras que quem não sabe do que aconteceu, não pode explicar. Mas depois, mais a fundo na pesquisa, achei algo sublinhado dizendo que ele foi um notório héroi para o povo da cidadela. E, então, me perguntei; ou eu vivi uma ilusão, ou as pessoas de lá não costumavam gostar muito dele não. Isso foi um golpe bastante complexo, ver essas palavras contraditórias e suspeitas. Eu o tinha superado, evitado falar ou pensar nele por anos, e de repente, temos um caso dele.

Ele foi um héroi para o povo.

Ele não foi um héroi pro povo, ele foi um héroi pro seu irmão. O peso na consciência de o ter jogado em outra dimensão fez com que ficasse por lá, atendo-se aos afazares da malandragem pra sustentar a sua vida bastante cara antes de nós chegarmos para as férias de verão. E muito menos depois que o irmão foi salvo o próprio veio a se tornar um héroi. Não, nem ele mesmo devia pensar isso naquela época. Então por que diabos os outros pensam que ele é digno? A Mabel vai dar uma crise, mas eu acho que já sei qual vai ser o nosso próximo caso. Nós temos de onde começar, irmãzinha. E isso é tudo que costumamos precisar pra arrasar corações.

Mason "Dipper" Pines.

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⏰ Última atualização: Aug 29, 2017 ⏰

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