Daniel estava prestes a se juntar aos cadáveres que jaziam ao seu redor. Respirava em um ritmo lento e compassado, como se estivesse trancafiado dentro de um caixão. A luz, no entanto, adentrava pelas janelas do saguão, tocando com suavidade os corpos espalhados pelo chão.
Apesar do cenário sombrio à sua volta, Daniel estava indiferente a tudo aquilo. Sua visão falhava e as alucinações, comuns nesse estágio da doença, distorciam o pouco que conseguia enxergar.
Onde havia morte, ele enxergava vida. As poças de sangue, que pintavam de preto o carpete, transformavam-se em vibrantes rosas vermelhas. Cada um dos pálidos corpos sobre o mar negro de sangue havia se metamorfoseado em uma majestosa árvore, e Daniel conseguia sentir em sua língua o sabor adocicado de frutas, sobrepondo o gosto ferroso do sangue que escorria do canto de sua boca.
Apesar de enxergar os mortos como uma vívida vegetação, os vivos não passavam de vislumbres imateriais. Sentia os cabelos de sua esposa tocarem seu rosto como veludo e suas mãos suaves acariciarem seu peito. Em qualquer outra situação, isso lhe daria arrepios, mas sua mente estava nublada, e seus olhos lhe revelavam uma imagem turva e intangível de sua mulher.
Ao lado dela estava o garoto, e, ao invés da figura assustada de uma inocente criança, Daniel via um querubim. O menino ainda era pequeno e vestia os mesmos trapos de sempre, mas dessa vez compridas asas envolviam seu frágil corpo negro e uma luz emanava de trás de si, como um holofote.
Então a luz se intensificou, cobrindo todo o ambiente e Daniel entendeu que sua hora havia chegado. Os rostos de sua esposa e do garoto voltaram ao normal, e ele soube que era hora de se despedir.
— Agora eu entendo, Cristina, querida. — murmurou Daniel, e uma débil voz saiu de sua boca. — A força que impulsiona o mundo.
Cristina sabia que cedo ou tarde seu marido começaria a delirar. O homem no rádio se certificara de que os sobreviventes saberiam diagnosticar a doença. Chamavam-na de delirium, devido às alucinações que os pacientes apresentavam logo antes de morrer.
Os sintomas eram transmitidos várias vezes ao dia. A primeira manifestação da delirium se dava através de vômitos, seguidos de febre alta. Menos de um dia depois, marcas vermelhas começariam a aparecer por todo o corpo. Assim que o paciente começasse a expelir sangue e a ter alucinações e delírios, o sofrimento chegaria ao fim.
Estava ciente da condição de seu esposo, mas Daniel sempre fora muito lúcido, e vê-lo desse jeito, como um velho decrépito à beira da insanidade, lhe afetava de uma maneira brutal, como se estivessem fisicamente conectados.
— Eu te amo, Daniel. Não me deixe só. — implorou.
— O amor. — continuou Daniel, sua respiração ainda pesada. — Até agora eu achava que o amor era a coisa mais importante, mas eu estava errado.
Virou a cabeça para tossir, e cuspiu um punhado de sangue, escurecendo ainda mais o chão. Filetes rubros escorriam de suas narinas e de sua boca.
— O amor é importante, mas não é absoluto. A morte... — e escarrou outra vez, espalhando gotículas de sangue pelo rosto de sua mulher. — a morte vem para todos nós. Ela nos une.
— Shhh... — Cristina pôs o dedo indicador sobre os lábios. — Não se esforce demais, querido. Descanse um pouco.
Ela falava com clareza, mas Daniel ouvia uma voz afinada, acompanhada de uma melodia de violinos e trombetas. Sentia-se na primeira fileira de um teatro durante um concerto de ópera.
— Eu consigo vê-la chegando, a morte. — disse Daniel, sua voz diminuindo como se controlada por um dimerizador. Sua visão voltou a falhar e tudo à sua frente de repente era luz. — Adeus, meu amor.