Hoje começa a terapia. Quanto tempo?, pergunto como se voltasse para o lugar de onde não saí, e outra vez ouço: o necessário. Uma corrente invisível me prende nessa situação e como um recém-nascido dependo dos mais velhos para sobreviver. Condenado às regras da imensa burocracia por uma vida plausível. Uma guerra invisível, sem baixas nem feridos e sem medalhas, no entanto, com tudo de psicologicamente assustador. Bilhões de pessoas sobrevivem nessa hora. Cada ser humano, um por um, com detalhes de uma intimidade irreconhecível para outros, formando um número absurdo de vidas. Eu também tenho de sobreviver.
Uma bandeira em três cores vibrantes com o emblema patriótico foi erguida no pátio. Imenso orgulho tremulando. Deve ser ano de copa mundial de futebol; neste país ninguém exibe a flâmula se não por motivos de disputa em jogos. Mamãe pergunta se preciso de carona. É um momento importante. Vai definir todas as próximas tardes. Penso em quebrar o vidro do extintor de incêndio, revirar a carteira da sala de aula, fugir da aula de matemática, botar a língua para fora na sala do inspetor; depois fazer uma careta estrambólica, bancar o mal-educado, chutar o lixo no corredor do banheiro das meninas e no dos meninos e seguir porta afora; embora não esteja mais na escola. Digo que sei bem o que me espera, e bebo o café. Forte e quente esse café. Decido ir só e absorver a cidade com suas limitações num golpe apenas. Uma cidade conhecida e desconhecida agora.
Chegando à estação. A chuva persiste. Corro para debaixo da terra e sigo. O metrô de sempre e o destino de todo dia aguardando estreitos o retorno à pátria. No vagão não tem lugar para sentar. Encosto no vidro sujo que abre e fecha e não detenho o pensamento em nada, no embalo tedioso e ininterrupto. No subterrâneo do meu cérebro adentro o túnel daquele passado recente, bem na beirada da memória, pronto para sair pela tangente, mas sempre possível; e então a neve retorna naquela brancura arredia!, desabrochando vertiginosamente, em um momento alva, no horizonte, em outro, com as sombras daquelas pessoas distantes agora. Essa vida, que ainda não é passado, mas forçosamente tem de ser. E pensar que por um instante fora do tempo eu já fui. Aquilo que vejo lá no fundo da consciência era minha adolescência; a vida não deveria ser sempre assim?, como uma gota de orvalho entre a noite e o dia. Tenho dezessete anos e uma sala de espera no horizonte, embora a beleza estática da neve permaneça zunindo como um sininho de um novo presságio. Um presságio que já foi. O tempo é medido pelas nossas ocupações. São datas e calendários. Uma leveza incorpórea, um abismo constante cerceado pelas horas estipuladas e fictícias de uma realidade obsoleta.
Neuroses, todos os tipos, psicoses, lembrei do Hitchcock, toxicomanias, alucinação, histeria, lembrei de minha mãe, depressão, lembrei dela outra vez, ansiedade, fantasia (erótica?), incesto, Édipo, perversões. A leitura trafega pelas mais bizarras situações e me identifico com absolutamente tudo. Esses manuais supostamente deveriam colaborar com alguma espécie de ajuda e eles só fazem aumentar a tensão. Eu mesmo já estou me diagnosticando. Respiro um pouco melhor e penso no Kafka. Se ele era um autêntico neurótico, e acho que sim, está tudo certo no mundo; o cara produziu coisas que valem a pena, e ser um problemático não é empecilho para tocar a vida para frente. Não encaixo exatamente em nenhum distúrbio muito arriscado para alguém, afinal, tentando ser relativamente normal. Vou esticar as pernas um pouco e respirar calmamente, deixando o ar penetrar lá dentro, acariciando a dor, prestar atenção no corpo e assim aliviar a mente. Cautelosamente inspiro. Fecho os olhos automaticamente; os vários tipos de neuroses desfilam, e elas caem como uma luva. Estou com um aceleramento no coração. Enquanto mantenho os olhos fechados, enxergo a saudade. Numa inércia incrível, no incomensurável dentro das pálpebras, busco um resgate que será impossível. Espio. Lá fora, o sol regateia um espaço entre nuvens pesadas e cada vez mais densas, com pequenos brilhos dourados nas extremidades. Chuva ou sol, o que vai ser. Decido que não sou louco, e, se já fui um algum dia, foi por livre e espontânea vontade, o que não me classifica definitivamente como um louco autêntico. É, mas estou no momento exato de ter um daqueles ataques fantásticos em que o sujeito literalmente vira um alucinado. Interessante é como mantenho a pose, o hábito de ficar apático, nem ao menos um suspiro escapa. Daqui não sai nada, só entra todo tipo de informação. Por isso e somente por isso escolhi a escrita (renegada devido ao curso dos últimos acontecimentos). Senhor Gabriel Moraes, por favor, queira me acompanhar, ouço. Na contramão da luz entrando pela janela, a psicanalista vem até mim, e noto seu aspecto magro, alongado e frágil. Até que ela é agradável. Quando sai da sombra, olho-a com firmeza, não quero já parecer um caso perdido. A chuva venceu e a noite chega mais cedo.
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Entre a Neve e o Deserto
General FictionRomance une aventura e existencialismo, rock e crítica social, sonhos adolescentes e dilemas reais de personagens inadaptados à rotina convencional. O romance de estreia de Gisela Rodriguez, Entre a neve e o deserto, retrata a jornada de três jovens...