Pego o metrô mais tarde e irei chegar atrasado. Chacoalhando vou e espremido, observando a floresta de edifícios à beira da estação. Depois ficamos submersos, desconectados da cidade. Cada vez mais volto o olhar para meus colegas de viagem e sinto a aproximação do insólito. Aquelas pessoas são pessoas afinal, meus irmãos bíblicos, meus irmãos no pecado. Neles bate um coração, circulam sangue e ar por toda a parte de seus corpos e carregam no espírito pensamentos, e mesmo ideias, em cada milésimo de segundo na Terra, emoções e desejo. Sim, são humanos. Por que, então, simulam uma expressão de mármore? E esse disfarce mórbido, por que fingem ser solitários? A maioria deles tem esposa, marido, filhos, pais, professores, chefes... Do que se trata esse teatro catastrófico?
O senhor está atrasado, senhor Gabriel Moraes, protesta a secretária em tom controlado. Sim, estou, algum problema muito sério?, retruco com desdém. Vou ver o que posso fazer pelo senhor, diz carrancuda. Ela pronunciou duas vezes consecutivas a palavra senhor sem ao menos acreditar naquilo. Tenho a impressão de que me odeia porque visto roupas velhas. Também deve cultivar uma aversão pelos brincos, afinal sou um homem. Provoco, fico de pé, finjo desconforto pela situação, só sairei caso se resolva logo. Sinto prazer com o estresse dela, suas mãos trêmulas. O fato de estar num consultório desperta um inesperado sarcasmo; no fundo, voltado para mim, já que o protagonista sou eu. O olho dela pula quando Marta abre a porta antes do previsto. Termino a partida: viu só, não precisava ficar irritada. Falo com uma leveza falsa; definitivamente estou sendo cruel e provavelmente é uma fuga dos meus problemas e no entanto não consigo evitar. Entro sem ver a reação da senhorita sei lá de que mundo. Penso nas expressões do metrô e tudo parece ter um elo sinistro.
Continuo com aquela sensação de desconforto. Olho para Marta, ela olha de volta, viro para a parede, encaro o tênis esquerdo e assim fico, mudo. O problema é a desconfiança em qualquer espécie de terapia e essas coisas que tratam das enfermidades mentais; sempre achei que não ajudavam em nada, e só confundiam ainda mais o pobre coitado desajustado, numa sociedade exigindo dele laços fortes e duradouros. Ela deixa o silêncio reinar sem o menor constrangimento; ao menos é o que parece, ou encena muito bem. Tive uma experiência com drogas e a coisa terminou mal, falo. Ela não fala nada. Não que as drogas sejam o real problema, explico. Sei sobre os últimos acontecimentos não terem sido causados unicamente por mim, porém, tenho apenas a lembrança obscura batendo na cabeça de que foi. Mesmo sem saber ao certo como aconteceu. Quero deixar as palavras virem. Entretanto, é impossível lembrar de tudo. Onde está aquilo que antecedeu o início do fim, nem fazendo esforço para tal, enxergo. Agora, a certeza dele existe, até mesmo nos olhos dos outros que não estavam lá. Então Marta resume a confusão em algo configurado, e volto para casa.
Tenho a impressão de minha mãe desconhecer o tipo de terapia, a qual ela mesma escolheu. Pergunto sobre o assunto, alguém indicou? Ela faz uma outra pergunta por sobre a minha, sem voz, apenas com o olhar de quem indaga sobre essa curiosidade desnecessária e parece considerar o assunto irrelevante. Estou olhando para ela, não consigo evitar meu desapontamento, e ela percebe a intenção de seu filho em travar um diálogo e se explica: Nós escolhemos o melhor para você. Por que será que ela não se resolve? O que a leva a permanecer intacta à confusão que somos nós? Onde mais a fantasia e a ignorância podem ir? Meu filho, ela continua, o importante é você superar... Não, mãe, não fala sobre o que você não faz a mínima ideia!, eu agradeço. Ela está presa e fora do meu alcance. Um muro se ergue mais uma vez, me vejo órfão e sei que depois tratarei de me amargurar como uma criança frágil. Preciso criar coragem para crescer.
Meu pai está em casa e vamos os três jantar juntos. Ouço os ruídos da cozinha misturados aos da televisão enquanto tento ler um Clive Barker. Quero ser agradável e assisto a um programa chato com dona Helena. Ela beberica o uísque e pergunta se quero. Oi, diz papai, e num galanteio inapropriado beija mamãe no pescoço. Eles se amam? Mas ela é ranzinza e ele fingido. É, eu tenho muitos problemas em relação a eles. Coitados, nem fazem por mal. Estão no uísque então?, ele pergunta. Sim, querido, quer?, ela diz. Sim, querido é demais para mim!, faço um esforço gigante, internamente esse esforço chega a soltar formigamentos pelo corpo, e tento esquecer que eles são meus pais por hora, pelo menos hoje. No jantar tenho de pertencer a essa dádiva de ser da classe alta e poder estar nessa casa ao som dessa música. Tenho que dar, ao menos, o mérito da dúvida. Chopin é bom, mas me desagrada.
– Gosto de Chopin. – Falo.
– Quando ele estava no leito de morte pediu que retirassem seu coração antes de o enterrarem.– Meu pai avança na conversação.
– Que horror! – Minha mãe se manifesta.
– Grande coisa, mãe, ele já estava morto antes. Esse coração está até hoje numa urna de cristal, dentro de uma igreja.
– Mais alguma travessura de Chopin? – Mamãe sorri.
– Nenhuma que eu saiba, a não ser de que ele está enterrado no mesmo cemitério do Jim Morrison.
– Ah, grande coisa esse Morrison!Um louco que morreu de overdose.–Ele diz e logo cala porque sabe, tocou num ponto delicado.
– Só tem um detalhe: ele não era louco. – Insisto.
– Sim, se não! Com tanta música boa por aí! O cara ficava pirando durante os shows, voz que é bom, nada; uma poesia muito discutível e uma grande performance sexual, apenas isso, nada mais, e ele vira um ídolo. – E papai ri buscando uma amabilidade impossível.
– E, afinal, o que é um louco? – A comemoração ao trivial acabara.
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Entre a Neve e o Deserto
General FictionRomance une aventura e existencialismo, rock e crítica social, sonhos adolescentes e dilemas reais de personagens inadaptados à rotina convencional. O romance de estreia de Gisela Rodriguez, Entre a neve e o deserto, retrata a jornada de três jovens...