2.

28 3 0
                                    


O revisor mandado pela voz do altifalante abriu a porta da nossa carruagem e um homem qualquer do fundo do vagão perguntou imediatamente:

— O que é que aconteceu?

— Há um declive mais adiante e os carris estão cobertos de neve.

— E agora? — perguntou o mesmo homem.

— Vamos ter de ficar aqui retidos. Talvez a central consiga enviar-nos alguns veículos de emergência amanhã de manhã, mas não apostaria nisso — respondeu-lhe.

Mais uma situação chata, disse para mim. É só situações chatas com Miles Mathews.

As luzes diminuíram de intensidade, o ar condicionado foi reduzido com um ruído bastante audível.

— Senhores passageiros, vamos reduzir ligeiramente o consumo de eletricidade para pouparmos energia — voltou a falar a voz nos altifalantes —, se tiverem convosco camisolas grossas ou cobertores talvez seja melhor usarem-nos agora.

Senti frio pela primeira vez; frio nos pulsos, onde as minhas luvas não se juntavam às mangas no casaco. O simples facto de Miles estar constantemente a arder de desejo para se esfregar em carne de mulher explica o frio que começou, lentamente, a apoderar-se do meu corpo. Queria gritar com ele. É um anseio constante, mas nunca concretizável.

Olhei de novo pela janela. Aquele nevão e a noite cerrada impossibilitava-nos de ver o que quer que fosse com nitidez, mesmo assim ainda consegui ver um funcionário do comboio que caminhava atabalhoadamente pela neve junto à lateral do comboio perscrutando os carris com uma lanterna.

— Podia-me dizer onde estamos? — questionou Stephanie ao revisor.

— Estamos mesmo no meio da floresta entre a periferia e o centro da cidade — retorquiu.

Stephanie avançou para junto de nós entregando-me o telemóvel, que felizmente tinha sobrevivido.

— A minha casa não é longe. Perguntava-vos se queriam vir, mas não quero parecer impulsiva.

— Eu alinhava numa estadia mais quente em tua casa — disse Miles.

— OK, esqueçam — Stephanie rolou os olhos de uma maneira que o desdém foi impossível de conter iniciando uma caminhada feroz em direção à saída da carruagem.

Atentei de novo a névoa exterior e, de seguida, olhei para Stephanie. Tinha duas hipóteses: ficava ali, dentro daquele comboio parado, escuro e frio, ou tentava fazer alguma coisa. Apresentava-se-me a possibilidade de controlar umas das situações daquele dia que já tinha fugido ao meu controlo, demasiadas vezes. Valia a pena tentar, a casa de Stephanie teria ar condicionado e comida. Persuadia-me com pouco.

— Espera Stephanie — corri até ela —, nós vamos.

— Vamos? — perguntou-me Peter atónito. — Não sei se será boa ideia.

Ignorei-o. Estranho. Normalmente sou muito avesso a correr riscos. Não sou o tipo de pessoa que gosta de percorrer o Trilho dos Apalaches ou comer peixe cru. Acredito nas virtudes de pensar em todas as situações possíveis, principalmente nas negativas. Estarei disposto a deitar todo esse caracter pela janela? Quando era miúdo tinha medo de adormecer; medo de acordar e observar que tudo o que eu conhecia tinha desaparecido. O meu pai costumava perguntar-me: «Qual é o pior que pode acontecer?» para me tentar reconfortar. Eu digo qual é o pior que pode acontecer: um dia acordar, com onze anos, e a mesma pessoa que tentou acabar com o meu maior medo, desaparecer, tornando esse devaneio numa realidade.

Olhei-os enquanto abria caminho entre as pessoas e senti-me concretizado quando começaram a andar, como se pela primeira vez estivéssemos a seguir os meus empreendimentos.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Nov 08, 2017 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Saturn FallsOnde histórias criam vida. Descubra agora