Eu e minha mãe nunca passamos de classe média baixa, mas isso não é coisa pra se apronfundar agora. Esse começo serve apenas para explicar o fato de que algumas coisas são instáveis na vida de quem é emergente e foi nessa instabilidade que deixei o conforto de um carro pra pegar transporte público.
Passei a maior parte da minha vida andando de ônibus, tenho vinte anos agora. Quando eu entrei na faculdade minha mãe tinha comprado um carro de segunda mão fazia poucos anos, então eu aproveitei que tinha carteira de motorista pra dirigir até a minha faculdade. Fiz isso durante dois anos, quando o carro, por ser muito velho, começou a dar vários problemas e chegamos a vendê-lo. Depois desses dois anos "mal-acostumados" indo de carro pra faculdade (e pra todos os lugares que eu precisava), cheguei a esquecer certas coisas que a gente vê quando entra em contato com outras pessoas no transporte público.
Saí de casa em uma dessas manhãs em que quem precisa acordar muito cedo pra chegar no horário estão nas paradas de ônibus esperando ansiosos para irem pros seus destinos. O meu era a faculdade, mas também tinha muita gente que iria trabalhar. O ônibus que chegou era do meu bairro, que é de classe média, e haviam pessoas de todo tipo dentro dele. As mais bem arrumadas desceram logo na avenida grande que ficava mais pra frente.
Minha faculdade fica do lado oposto ao meu bairro e é longe demais, por isso deu tempo de ver muita coisa. Depois de sair dessa avenida em que desceram pessoas elegantes, cheguei em um bairro lindíssimo que fica na beira da praia. Era impossível não admirar aqueles prédios gigantescos que tinham ali. Era cheio de hotéis luxuosíssimos e era possível ver turistas caminhando no calçadão. Aquele lugar parecia pertencer a uma classe de pessoas que estavam muito distante da nossa realidade. Eu falo da "nossa" realidade, porque no mesmo instante em que eu apreciava toda aquela beleza, dei uma rápida olhada ao meu redor e percebi que não era a única de boca aberta. Alguns moleques olhavam embasbacados assim como eu.
Embora a paisagem fosse realmente encantadora, pude notar que algumas senhoras, e não eram poucas porque creio que somavam no mínimo doze delas, pareciam não estar tão entusiasmadas como eu e meus companheiros. Mais a diante o ônibus parou numa rua que ficava em meio a todos aqueles prédios incríveis e todas, TODAS, as senhoras entediadas desceram ali. No mesmo instante eu associei os fatos. As mulheres tinham meia idade, expressões cansadas, chinelos e roupas desgastadas que definitivamente contrastavam com a elegância do lugar. Elas não poderiam de forma alguma pertencer a ele, elas só poderiam estar ali para servir àqueles que pertenciam a ele. Se tratavam das empregadas domésticas.
Depois de cair do meu devaneio encantado sobre os prédios, comecei a refletir sobre como seriam as pessoas que moravam naquele lugar. Lembrei certa vez em que ajudei um tio com entregas e fui deixar sushi em um prédio parecido e o cliente era um rapaz altíssimo, muito branco, forte e estava acompanhado de uma moça de longos cabelos lisos, tão branca e alta quanto ele. Isso me fez voltar o pensamento às senhoras maltrapilhas que desceram a pouco: eram negras de vários tons, mas todas eram negras.
Enquanto eu ia pra faculdade, pensava sobre tudo que havia visto e desanimada percebi o quão próximo a cultura escravocrata estava de mim e de todos nós. Ela não está nos livros de história, não está nas exceções em terras sem lei desse país. A escravidão está diante dos nossos olhos todos os dias e passa hereditariamente. A casa-grande transformou-se no apartamento de luxo.
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O despertar de um devaneio
CasualeUma crônica sobre reflexões feitas em uma viagem de ônibus