Capítulo II: O último natal

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Natal de 2016. O último junto de meu Pai.

Do segundo sábado de dezembro até dois dias antes do Ano-Novo, como de costume, a família (ou melhor, parte dela) se reuniu na Real Quinta da Veiga, uma vasta propriedade rural em Ourense na qual se produz grande parte dos alimentos utilizados nas cozinhas dos palácios, desde grãos e vegetais até carnes variadas, como também a distinta criação de cavalos da Coroa, contando com trezentos animais de raça pura, a paixão de Papai.

A Real Quinta traz boas e dolorosas lembranças, de muitos natais felizes com a casa cheia e da doença da minha avó. Tão logo a diagnosticaram com mal de Alzheimer, mudaram-na para lá onde receberia o devido acompanhamento de médicos e enfermeiros, afastada da corte e da agitação da cidade. Faleceu no Natal de 2009, enquanto assistia à transmissão televisiva da missa do galo celebrada pelo Papa, na companhia de uma filha (tia Francisca) e uma enfermeira; todos os outros estávamos no Santuário de Nossa Senhora das Ermitas quando aconteceu e só soubemos quando voltamos para a ceia.

Desde então, boa parte da família se ausenta. Em 2016, além de meus pais, meus irmãos e eu, estavam também minha avó materna com seu casal de filhos, tio Amadeu e tia Marta, minha tia-avó (Maria do) Carmo e meus tios paternos solteiros, a melancólica tia Tê e o sorridente tio Carlinhos.

O inverno proporcionava muita diversão para meus irmãos, especialmente nas guerras de bola de neve, das quais tio Carlinhos participava como se fosse criança. Os gêmeos, incomparavelmente travessos, aproveitavam o frio para aprontar toda espécie de peraltice contra os empregados. Certo dia, em que, de uma janela do primeiro piso, viraram um balde de água com gelo em cima do mordomo que passava pelo pátio, tiveram a má sorte de serem pegos por Mamãe, que, furiosa, deu-lhes um longo e estridente sermão, recolhendo os seus celulares por alguns dias como castigo. Em seguida, Mamãe adiantou-se em quase implorar por perdão ao pobre mordomo que, embora humilhado pelo banho de água gelada, ficava nitidamente desconfortável em ter a rainha naquela situação.

Com Papai, visitávamos as cavalariças diariamente e, quando o tempo permitia, dávamos uma volta a cavalo. Dentro de casa, nossos passatempos eram vídeo-game, baralho, leitura e os dálmatas de Mamãe.

Na véspera do Natal, tendo retornado da missa no Santuário de Nossa Senhora das Ermitas e nos dirigindo à sala de refeições onde estava servida a ceia, deparamos com um piano, que não deveria estar ali.

- Antes de começarmos, uma garotinha gostaria de fazer uma breve apresentação - anunciou Mamãe, sorrindo com empolgação, a única que sabia o que estava para acontecer.

Dito isso, minha irmãzinha caçula, Zita, de 5 anos, sentou-se ao piano e disse esta frase, provavelmente decorada:

- Esta apresentação, eu ofereço a duas pessoas muitíssimo importantes: o Rei e Vovó.

A pequena tocou Oh Holy Night, no que foi acompanhada por Mamãe cantando com sua doce e mágica voz. Houve um ou dois momentos de imprecisão naquela que foi a primeira vez em que a pequena demonstrou seu talento ao piano e surpreendeu a todos. Vi Papai, que puxou os aplausos, com os olhos marejados de orgulho. Tendo terminado, Zita fez uma infantil reverência a ele e correu para abraçá-lo, ela mesma sem acreditar no seu bom desempenho. Nós seis irmãos somos músicos, cada qual com seu instrumento: o meu, o violino; os gêmeos, tambores; Ana, flauta; Luís, trompete; e Zita, como se revelou, piano.

- Muito bem, minha princesinha - disse Papai dando-lhe um beijo na testa enquanto olhava apaixonado para Mamãe, a responsável por aquele presente natalino.

- Posso até chamá-la para tocar na minha festa de aniversário - brincou tio Carlinhos, o que não agradou Papai.

Tio Carlinhos completaria 30 anos no dia 26 e pretendia celebrar da forma mais esplendorosa que pudesse. Queria centenas de convidados, várias bandas de música, dançarinas e máxima ostentação, tudo pago com sua parte na herança do falecido pai, o quinto Duque de Olímpia, meu avô. Para isso, pediu o Castelo de Valmonte, propriedade ancestral da dinastia, localizado próximo à fronteira com a Espanha, o que lhe foi negado por Papai, contrário a qualquer esbanjamento, mesmo que com dinheiro próprio. Sem outra opção, o aniversariante alugou uma casa de festa à altura, o deslumbrante palacete do (falido) Conde de Vilanova de Arousa, em Olímpia. O Rei enfureceu-se; uma festa desse porte na capital era tudo que ele não queria, pois não seria possível evitar a imprensa e atrairia críticas à Coroa; impossibilitado de impedir a realização do evento em razão de tio Carlinhos já ter gastado nisso muito dinheiro e se mostrar irredutível, na qualidade de Chefe de Casa, Sua Majestade proibiu toda a Família Real de comparecer. Esse dissabor em nada prejudicou a relação dos dois, apenas se desentendiam quando se tocava no assunto. Papai enxergava o irmão mais novo, que ficou órfão de pai ainda criança, como um filho; ao mesmo tempo que queria mimá-lo e protegê-lo, sentia-se no dever de corrigi-lo e educá-lo.

Por fim, passado o evento, os fatos confirmaram que Papai estava absolutamente certo. A imprensa sensacionalista criticou ferozmente o luxo daquela celebração e deu a entender (falsamente) que aquela magnificência tinha sido custeada com dinheiro público. Apesar de vetada a entrada da realeza galiciana, nada impediu que comparecessem jovens princesas e príncipes estrangeiros, que abrilhantaram aquele cenário surreal em meio a nobres  e endinheirados dos diferentes continentes. Para piorar, tio Carlinhos foi fotografado com diferentes mulheres, o que fez com que sua namorada, ausente por motivo do trabalho como modelo e que nem sequer foi convidada, terminasse com ele no dia seguinte. Os 30 anos do Infante D. Carlos foram o assunto predominante nas revistas de fofoca, no Instragram e até nas colunas de política por vários dias. 

Um jovem príncipeWhere stories live. Discover now