Poesia não é sobre evitar que crianças morram;
poesia não é sobre evitar guerras,
acabar com a fome ou com a corrupção;
poesia não é sobre evitar que um disparo seja feito,
não é sobre bom senso;
poesia não é sobre salvação mundial;
poesia não é sobre paz - pelo contrário.
Poesia é sobre armazenamento na nuvem.
Poesia é sobre uma caixa imortal e sobre vômito.
Poesia não é sobre beleza e flores.
Todos nossos pensamentos são conseguintes do mundo onde nos encontramos, e esse é sujo, ainda que por nossa culpa; assim sendo, também o somos, ainda que involuntariamente.
Poesia é sobre tirar de dentro o que incomoda e o que nos provoca.
Poesia é sobre a tentativa de fazer cessar uma azia ou má digestão.
Poesia é um sal de frutas.
Poesia é sobre peristaltismo inverso. Quanto mais se escreve, mais bulímico se torna.
Poesia é sobre coragem, também - poucos são corajosos o suficiente para vomitar voluntariamente a fim de cessar tal mal estar.
Esse vômito poético, entretanto, não é nojento como se pensa:
tem textura de paixão,
alguns pedaços esparsos de lembranças consumidas semana passada
e cheiro de vida,
às vezes com cor de críticas sociais,
outras vezes só com odor de frustrações pessoais.
Esse vômito poético, entretanto, é bom: tão bom que faz mal se ficar só dentro, por isso convém colocá-lo para fora junto com um pedaço chamado "eu", que sempre se regenera.
Poesia é sobre bile em excesso.
Esse vômito poético, entretanto, não sai ao ser lavado: ele permanece, junto com o pedaço "eu", e ambos se imortalizam e se mesclam com todo o resto da humanidade.
As pessoas são sobre vômitos, também:
vomitam suas inseguranças, carências, sotaques,
gostos musicais, medos, experiências, decepções, volatilidades,
mas, ao contrário do vômito poético, o vômito pessoal pode ser nojento - nesse caso, convém, às vezes, guardar sua verdade apenas para si.
Poesia é sobre imortalidade, assim como qualquer outro registro, artístico ou não.
Poeta é sobre ser o guardião de memórias.
Poeta é sobre ser o guardião da magia, porque toda arte é passível da presença de tal:
ainda que você leia um conto sujo do Bukowski, as palavras dele, ainda que antigas e meramente nominais, escritas num pedaço de papel qualquer, traduzidas por um desconhecido, te causam sensações - não necessariamente boas -;
ainda que você leia Clarice, as filosofias e inúmeras crises existenciais dela te causam pensamentos reflexivos - não necessariamente benéficos ao seu psicológico -;
ainda que você assista a uma peça teatral, os gritos súbitos dos atores te causam susto e espanto ao mesmo tempo que a quebra da quarta parede pode te provocar tensão.
Isso é magia, necessariamente.
Ouso contradizer nosso ordenamento jurídico e alegar que o principal bem de um indivíduo não é a vida, mas suas memórias, cada uma delas, até as ruins - mas o que seria a vida senão o conjunto de lembranças? Talvez nossos juristas não estejam tão errados.
A despeito, a Constituição não cita, em momento algum, a tutela ao direito à memória individual, mas a poesia o faz com maestria, já que essa é sua essência, daí sua importância.
Ler alguém é a coisa mais íntima que se pode fazer com uma pessoa - salvo adormecer ao seu lado, o que é equivalente a confiar sua vida a ela, haja vista tamanha vulnerabilidade desse momento -;
é adentrar em seu interior, é fazer parte de sua alma, é enxergar as coisas sob sua ótica; é viver o que ela viveu e até ser ela, ainda que por alguns minutos. É ser outra pessoa.
O único ônus que a leitura demanda é a sensibilidade - científica ou meramente artística - para entender o que está ali sendo exposto, o que nem sempre é taxativo, sendo, assim, passível de diversas interpretações - sendo, assim, passível de autor + leitor (por isso cada leitura é única - o segundo sujeito nunca é o mesmo).
Poesia é excesso, é afogamento, é paixão - não apenas em sua acepção afetiva - transbordando; é um copo meio cheio, é impotência, é um tiro de canhão, fogos de artifício.
Poesia não é sobre beleza o tempo todo, às vezes é sobre angústia e raiva, indignação - ainda que a beleza resida na possibilidade do sentimentos dessas coisas -, ou você acha bonito os últimos poemas do Bandeira?
Poesia é uma vela de aniversário sendo assoprada. Poesia é um abraço de saudade. Poesia é a lua cheia, baixa e amarela. Poesia é comer queijo azul. Poesia é vê-la dormir. Poesia é confiar em alguém. Poesia é seu cachorro acordar com o rabo abanando às onze e cinquenta da noite só porque você chegou em casa e ir te dar oi com os olhos pequenos, cambaleando nos próprios passos. Poesia é ficar consigo mesmo. Poesia é um banho de mar. Poesia é se remontar. Poesia é, às vezes, escrever para não ter que soluçar pelos olhos com tanta coisa dentro. Poesia é ver alguém morrer. Poesia é sacrificar uma rosa só para dá-la a alguém. Poesia é dirigir em uma rodovia sem trânsito. Poesia é vê-la passar. Poesia é erupção. Poesia é um beijo calmo e repentino no vagão do metrô. Poesia é enlouquecer nesse mundo. Poesia é parar no tempo. Poesia é ajudar alguém que precisa. Poesia é um morador de rua pedindo dinheiro - esses são os maiores poetas de todos os tempos. Poesia é aprender algo novo. Poesia é toque e pele. Poesia é arrepio. Poesia é se jogar de um avião. Poesia é apostar com a vida. Poesia é adrenalina. Poesia é se desmontar. Poesia é querer fugir. Poesia é cemitério. Poesia são folhas caindo em lugares específicos. Poesia é o moço que vende flores na Paulista - ele aceita cartão e tem cabelo encaracolado. Poesia é saber ouvir. Poesia é o lápis rabiscando o papel do caderno. Poesia é o barulho do apontador. Poesia é o som de um beijo apaixonado - ainda que só por uma das partes. Poesia é saber sentir. Poesia é mergulho. Poesia é morrer de amor. Poesia é grito. Poesia é perder alguém. Poesia é bater em um saco de pancada com toda sua força. Poesia é se emocionar. Poesia é pegar o ônibus cheio todos os dias. Poesia é mudar de opinião. Poesia é conhecer. Poesia é ser. Poesia é tentar adivinhar os pensamentos de tanta gente passando na Consolação a essas horas. Poesia é querer saber porquê aquela menina da estação estava com a cara triste. Poesia é se reinventar. Poesia é questionar tudo. Poesia é o sexo de quem se gosta. Poesia é a moça que toca violino na Barra Funda mas ninguém para para escutar. Poesia é comprar chocolate na banca de jornal antes da aula começar. Poesia é olho molhado e boca seca. Poesia é coração acelerado e enxaqueca. Poesia é você. Poesia sou eu. Poesia é, e só.
Poesia foi ajudar a carregar um caixão com minha avó dentro, no final do ano passado, e ver caírem folhas, depois de um vento forte, exatamente sobre seu túmulo. Poesia foi vê-la nascer de novo dentro de mim. Poesia foi não ter tido ninguém senão eu mesma nesse momento. Poesia é dizer o que a gente nunca diz.
Poesia é vulnerabilidade.
Poesia é sobre sensibilidade.
Mas ninguém mais liga para isso.
Acho que eu também não...
- S.