Capítulo I

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Está chegando...


Uma voz áspera e lenta alcança meus ouvidos, fazendo com que meus olhos se abrem quase que instintivamente. Com viradas de pescoços rápidas tento encontrar a origem da voz, porém tenho certa dificuldade já que o quarto encontra-se em uma perfeita penumbra, recebendo apenas os primeiros e fracos raios de sol que atravessam os furos da renda das cortinas.


- Está chegando o que, voz? - pergunto quase em forma de sussurro, já que não quero acordas as meninas.


Está chegando o décimo sexto aniversário de alguém... Já te falei o quanto gosto disso???


Ao mesmo tempo que esfrego meus olhos, tiro as inúmeras cobertas de cima de mim, as mesmas que já fazem minhas pernas soar de calor e com pouco receio toco meus pés no chão gelado de madeira. Ao escutar cada palavra, meu corpo se arrepia ainda mais, mesmo tendo acostumando ouvir essa voz demoníaca desde que me entendo por gente, jamais irei me acostumar com o quanto ela me deixa assustada.


- Bom, acredito que por me fazer lembrar dessa data desde sempre, tenho a leve impressão de que você gosta disso bem mais do que eu... Mas a pergunta aqui é o porquê. Por que meu décimo sexto aniversário importa tanto pra você?


Um perfeito silêncio paira sobre o quarto. Instantes depois da minha pergunta, uma risada macabra começa ecoar dentro da minha cabeça e sei que nossa conversa chegou ao fim. Tenho que admitir essa parte sempre me faz ter vontade de sair correndo e não olhar pra trás sequer uma vez.


No entanto é estranhamente irônico, porque por mais demoníaca que seja essa voz, que por sinal nem sei da onde vem e muito menos quem é dona dela, nunca senti um real medo ou apavoro... Digamos que por mais santificado que possa ser o meu "lar", os momentos que sinto ter uma família por perto é quando essa voz entra na minha cabeça.


Tudo bem, permito que faça uma imagem esquisita sobre mim, uma porque estou muito bem acostumada com isso e outra que também iria olhar de forma diferente se alguém dissesse que sente ter uma família no momento em que uma voz do além a visita.


Muitos anos se passaram desde quando cheguei aqui. No entanto poucas coisas mudaram, na verdade quase nada. Muitas meninas chegaram chorando e felizmente muitas foram embora, tendo estampado em seus rostos largos sorrisos. Mas como podem perceber, aqui estou eu. No orfanato. Prestes a completar dezesseis anos e sem nenhuma esperança de ser adotada por um casal que pretende ter uma família feliz em uma casa grande, com um jardim florido e um espaçoso gramado verde pra que no fim de tarde todos brincarem com o enorme cachorro de pelos longos e macios.


- Para com isso Cinzia! - digo baixo amarrando meu cabelo em um rabo de cavalo - Aqui você tem tudo o que uma família feliz pode te dar... Só falta um pequenino detalhe para sermos uma bela "família" como essas de filmes... A felicidade que ela traz.


Engraçado viver em um lugar que recebe tantas meninas e se despendem das mesmas com facilidade e rapidez. Sei que orfanatos servem pra isso, apenas para você ter um teto para chamar de seu até encontrar um lar. Mas sei lá, dói admitir que ainda sinto certa inveja de todas elas.


Inveja por não ter sido uma das meninas que a Freira Lucy sempre elogiava com olhos brilhantes e exibia como se fossem aqueles carros esportivos luxuosos que todos ficam hipnotizados quando eles passam. Inveja por não ter sido uma daquelas meninas que iam ao centro da cidade com as freiras para comprar roupas novas. Inveja por não ter sido olhada, sequer uma vez, com carinho e amor por aquelas que deveríamos tratar como parte da família.


A filha da SombraOnde histórias criam vida. Descubra agora