Capítulo único

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   Já se passava das onze da noite. Lydia se encontrava em frente ao seu notebook, com uma das mãos parada em cima do teclado, a outra em volta de uma taça de vinho tinto e os olhos azuis grudados naquela tela em branco. Fazia dois dias que a jovem escritora estava reclusa naquela cabana, no meio de uma floresta em Massachusetts. Depois de duas sagas de sucesso internacional, era de se esperar que ela tivesse uma boa ideia para seu próximo projeto, mas nada se passava pela sua cabeça.

   Cansada e desapontada consigo mesma, Lydia virou a metade do vinho que ainda restava e foi até a banheira de sua suíte, a enchendo de água morna. Pondo a taça vazia de lado e pegando a garrafa consideravelmente cheia, a jovem se despiu e entrou na água, deixando aquela sensação quente tomar conta de sua pálida pele branca.

   Completamente relaxada, a moça deu um pulo ao ouvir um estalo vindo da porta da cabana. Levantando e se enrolando rapidamente em uma toalha, Lydia segurou a garrafa de vinho pelo gargalo e a manteve acima da cabeça, pronta para atacar quem ou o que quer que fosse. Caminhou lentamente até a sala, o coração batia tão rápido que parecia prestes a explodir e todo o seu corpo soava com o nervosismo. Observando o lugar, a morena lutou contra as pernas trêmulas e enfim chegou até a porta. Um estado de alívio tomou conta de seu corpo quando ela viu do lado de fora um pequeno e fofo gato cinza. Lydia riu de si mesma e pôs a garrafa na superfície mais próxima, uma mesinha de canto, abrindo a porta em seguida.

   — Olá, amiguinho. — disse ela, o pegando no colo. — Você está perdido?

   O gato soltou outro miado e se aninhou em seu peito. A mulher concluiu que a resposta fosse sim, afinal nem coleira o bicho tinha.

   — Você pode ficar por enquanto, fofinho. — continuou Lydia, pondo o gato no sofá.

   Ela decidiu voltar e terminar seu banho antes de ir dormir.

   Lydia estava semi-adormecida quando ouviu um estalo na porta, e outro, e mais um. Ao contrario do estalo de mais cedo, com o gato, esse parecia mais uma batida oca na porta de vidro da cabana. Levemente assustada, a morena resolveu ir até lá ver o que estava acontecendo. Estava tão escuro que era difícil achar os interruptores pela parede. Ela caminhou pelo corredor, passando pela cozinha e acendendo todas as luzes que encontrava no caminho. Na porta, uma silhueta estranha a assustou, fazendo seu coração acelerar.

   Quando a viu recuar, o dono da silhueta tirou seu capuz preto e se aproximou da luz, revelando um lindo homem de pele morena e cabelos negros como a noite, e como os da própria Lydia.

   — Eu não vou machuca-la, estou procurando o meu gato. — disse o rapaz, o mais alto que pode.

   Lydia entendeu as palavras e voltou a se aproximar. Não teria como ele saber que um gato que não pertencia a ela entrou ali, a menos que fosse mesmo dele, pensou a morena. Ela cogitou deixa-lo lá fora e voltar a dormir, mas estava chovendo tanto e, antes que ela pudesse decidir, o gato apareceu e caminhou até lá, como se quisesse ir em direção ao seu dono. Sem muitas opções, a jovem acabou destrancando a porta e o deixando entrar.

  — Pegue o seu gato e vá embora! Por favor.

   — Calma, eu não vou te machucar ou algo assim. — disse ele, pegando o animal no colo. — Eu posso esperar a chuva diminuir um pouco, pelo menos. Não estava esperando, por isso não trouxe guarda-chuva.

   Lydia olhou para fora, vendo a forte chuva que caia e concordou, relutante.

   — Obrigada, moça. Meu nome é Enzo Parker. — disse o moreno, esticando a mão para ela.

   — Lydia Collins. — respondeu a mulher, apertando sua mão.

   Ela pôs um pouco de vinho em uma taça e ofereceu ao rapaz, que aceitou. Depois pegou uma para ela também e se sentou no sofá, pronta para esperar a chuva passar e torcendo em silêncio para isso ser rápido. Lydia pegou o celular que estava jogado na poltrona do lado e teve uma ideia para garantir sua segurança.

   — Sorria. — disse a moça.

   — O que está fazendo?

   — Medida de segurança. Eu mandei uma foto sua para algumas pessoas de confiança com a mensagem: Se acontecer algo comigo, a culpa foi dele.

   — Então é melhor eu te proteger. — respondeu Enzo, com um ar despreocupado.

   — Olha, não é nada pessoal, mas você tem que admitir que isso foi um ótimo começo para um filme de terror.

   — E eu seria o maluco da floresta, ou o jovem que entra na casa de uma assassina quando está buscando abrigo?

   — Não sei. Talvez devesse tirar uma foto minha também.

   Ambos se olharam por alguns segundos e então começam a rir em sintonia. Eles foram interrompidos pelo miado do pequeno gatinho, que agora se aninhava no colo de Lydia.

   — Você gosta de gatos? — perguntou Enzo, ao ver que a jovem não se incomodou com o gesto do bichano.

   — Gosto. Já tive um quando era pequena.

   — Eu também. Na verdade, os adoro. Tem uma certa beleza misteriosa neles.

   Lydia riu por um momento e indagou:

   — Como assim? "Beleza misteriosa"?

   — Sim. — respondeu ele, em um tom mais sério, porém, não zangado. — São tantas lendas e mitos que os envolve. Por exemplo, sabia que algumas pessoas acreditam que os gatos podem ver o espectro da morte?

   — Não. — respondeu a morena, sentindo um arrepio percorrer sua coluna.

   — Outras dizem que eles trazem o presságio de uma morte. Algumas acreditam até que eles servem como receptáculo para as almas antes deles subirem aos céus.

   Lydia virou o vinho que restava em sua taça e pôs o gato no chão, levantando-se. Algo a incomodava, mas ela não sabia o que. Ela pensou em Enzo, ou no gato, mas parecia algo mais.

   Enzo se levantou e se aproximou da mulher, segurando uma de suas mãos.

   — Diga-me, Lydia. — disse o rapaz, em uma voz rouca e pausada. — Você teme a morte?

   Uma trovoada surgiu assim que Enzo disse a palavra "morte". Lydia olhou assustada para a janela e algo dentro dela se soltou, soltando também as palavras:

   — Sim, eu temo.

   A jovem o olhou confusa, e depois para sua mão. Por fim Lydia entendeu o que aquele misterioso homem fazia ali. Ele a puxou pela mão, em direção ao banheiro. A morena queria lutar contra, mas algo a impedia.

   — É hora de encarar a verdade, Lydia.

   — Não! — gritou Lydia, mas não conseguia parar de andar naquela temida direção. — Por favor, não!

   — Sinto muito, mas é o meu trabalho.

   A porta se abriu, revelando uma banheira cheia de uma venenosa verdade.

   — Sinto muito, querida, mas não deveria ter tomado tanto vinho.

   De repente, uma memória invadiu a cabeça de Lydia. Ela estava na banheira e o vinho acabou. Ao tentar se levantar para buscar mais, uma tontura se abateu sobre ela e a mesma despencou, sentindo uma enorme pressão na parte traseira da cabeça ao bater na dura cerâmica. Havia sangue por toda parte e ela se desesperou. Ao ver seu corpo sem vida, a jovem correu e se escondeu na sala, e foi aí que o gato apareceu.

   — Eu imaginei tudo? —indagou Lydia, ao olhar para o cadáver a sua frente, tão imóvel quando ela naquele momento.

   — Infelizmente, querida. Desde o momento em que você bateu a cabeça até o meu gato chegar para cuidar de sua alma, foi tudo fruto da sua imaginação e do seu medo de morrer. — respondeu Enzo. — Você não queria aceitar sua morte, enxerga-la, então eu vim mostrar para você.

   Lydia o olhou, assustada. Como pôde esquecer que morreu? Por favor, seja um sonho. — pensou.

   — O que você é?

   — Um ceifador, evidentemente. Agora eu preciso fazer o meu trabalho.

   O homem pôs sua mão sobre o ombro de Lydia enquanto uma foice surgia na outra. Lydia tentou hesitar, mas a essa altura já estava claro que ela não tinha outra escolha, se não aceitar seu fardo. E assim, com pesar e medo, ela aceitou sua morte e partiu com o ceifador para onde quer que o seu destino a guiasse.

Venenosa VerdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora