Sermões de um Peixe

III

  Apercebi-me de uma coisa.

  Uma amiga chegou ao pé de mim e puxou-me as mangas para cima à espera de ver há quanto tempo não me cortava. Como não tinha cicatrizes recentes sorriu para mim.

  E não foi logo que me apercebi, no momento achei normal, afinal ela é minha amiga e está preocupada comigo. Mas só umas horas depois reparei que ela não me tinha perguntado como estava, se estava bem, se estava mal , o que me vai na alma.. Não; ela limitou se a olhar para os meus pulsos e assumiu que estava tudo bem.

  E foi nesse momento que percebi.

  Uns dias depois passei por ela, cumprimentá-mo-nos e ela olhou para os meus pulsos. Imediatamente assumiu uma expressão chateada, não preocupada ou triste ou até mesmo desapontada não, chateada.
  "Oh Leonor tavas a ir tão bem"
  E eu sei o porquê de ela estar chateada. Ela estava chateada por se sentir desconfortável por ser confrontada (novamente) com a minha dor.

  Apeteceu me gritar; gritar porque o único motivo pelo qual muita gente me pede para que não me corte não é o facto de estarem preocupados comigo. Pedem que não me corte para não se sentirem desconfortáveis e poderem manter a ilusão que vivem num mundo perfeito.

  Só porque as cicatrizes dos meus pulsos sararam não quer dizer que a dor já não existe. 
  Os motivos pelos quais me cortei ainda estão cá, vocês é que se deixam de importar porque "sem sinais à vista como haveriam de saber que algo estava mal?"
  E há os hipócritas que acham que é porque queremos atenção, porque romantizamos este tipo de problemas.

"Há tanta gente que sofre mais que tu e não se corta"
Verdade.
  Consomem drogas, fumam, fazem sexo para se sentirem degradados, deixam se estar em relações abusivas por acharem que merecem, metem pedras nos bolsos e afogam-se, dão um tiro na cabeça, enforcam-se ou atiram se para a linha do comboio.
  E há pessoas que sobrevivem a vida inteira sem nunca viverem e vocês olhariam para eles e diriam que estão bem.
  E  quando aqueles que não conseguem sobreviver se matam ainda têm a audácia de dizer que não percebem o porquê, quando os sinais a dada altura já tiveram à vossa frente mas vocês preferiram escondê-los e fingir que estava tudo bem em vez de fazer alguma coisa.