•1• Sob o seu olhar

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• DRACO •

Roer as unhas sem parar se tornou um hábito doloroso, a ansiedade dos últimos tempos me impedia de manter paz de espírito enquanto arrancava lascas da carne com os dentes. Ajustei a gravata no colarinho e cobri o corpo com a boa e velha capa abotoando o broche da Sonserina. Remexi os ombros para aliviar a tensão e tomei o caminho até a estação.

Com a reconstrução de Hogwarts e grandes ameaças eliminadas, grande parte dos alunos estavam voltando inclusive eu, aquele que tentou assassinar Dumbledore, que se juntou ao Lorde das Trevas e não passa de um medroso que na primeira oportunidade fugiu como se não houvesse amanhã. Ser um comensal não era verdadeiramente o que eu havia sonhado e posto de meta de vida, a enorme pressão dos meus pais, a obrigação imposta de não fracassar e o fardo que Voldemort insistia em empurrar em meus ombros me levou a uma epifania.

Não há nada de errado em ter amigos, não é? Não há nada de errado em se apaixonar, não é? Não há nada de errado em ter pelo que proteger de bom grado, não é?

Adentrei o trem e fui recepcionado com olhares tortos, poderia ser pior, mas eu negaria até a morte que era grato ao Potter por aquela entrevista para o jornal, a qual ele amigavelmente me defendeu.

"Draco de forma alguma deveria ser severamente punido, infelizmente não posso dizer o mesmo de seu pai. Draco, assim como muitos de nós foi arrastado pelo medo e pelo dever de não desapontar as pessoas que confiavam em nós."

A cada cabine que eu passava, ou estava cheia, ou a fechavam na minha cara. Compreendo o desgosto dos meus colegas, eu provavelmente faria o mesmo, continuei seguindo em silêncio e parei em frente a uma das últimas cabines do vagão, onde só havia uma garota. Felizmente uma que eu conhecia. Astoria. Éramos colegas de Casa, seus cabelos castanhos estavam presos em uma trança e ela remexia uma sacola de papel, limpei a garganta para chamar sua atenção e ela somente me olhou de soslaio.

-Você se importa se eu...

-Claro. Pode entrar. - ela sorriu tímida e continuou procurando sabe-se lá Merlim o que.

-Astoria, não é mais fácil você usar um feitiço?

-Achei! - ela levantou a caixa de Feijões de Todos os Sabores - Aceita? - estendeu a caixa para mim.

Cogitei negar, mas eu estava me purificando do antigo eu, então coloquei a mão dentro e peguei alguns. O trem começou a andar e ficamos sós na cabine, Astoria estava encolhida no banco, assaltando Feijões enquanto desenhava algo no grande bloco de folhas sem pautas. Seu olhar parecia distante e ao mesmo tempo completamente encantado com o que quer que fosse que estava pensando, vez ou outra direcionava o olhar a mim e eu só via pelo reflexo no vidro visto que fingia apreciar a paisagem enjoativamente cravada na memória.

-Por que você ficou nas cabines dessa vez? Sempre fica naquele vagão mais "bam-bam-bam". - Astoria abraçou o bloco e piscou atentamente.

Poderiam haver trilhões de feitiços no mundo, mas naquele momento os longos cílios escuros e espessos da garota em minha frente me prenderam em um que eu não tinha conhecimento.

-Draco? - balançou a mão em frente do meu rosto me despertando.

-Acho que as pessoas têm receio de mim, pelo que houve. - coloquei os cotovelos sobre as penas e pendi a cabeça.

-Não acho que devia se incomodar, Harry...

-Eu não pedi nada ao Potter. - bufei e me arrependi, levantei o olhar e Astoria mantinha um sorriso tênue.

-Você nunca conversou casualmente com uma garota não é? - ela se encostou no banco.

Astoria voltou a rabiscar o bloco, ela estava certa, meus atos usuais não envolviam flertar ou nada desse tipo, manter uma ligação com as pessoas era um assunto a qual eu dava pouca importância apesar de por muito tempo ter companheiros ao meu lado. Pergunto-me porquê Astoria não me evitava como as outras pessoas, de certo eu passei a observar o mundo com outros olhos, ignorei fatos que previamente me eram relevantes, mas demasiadamente superficiais e foquei mais cruamente nos cenários gerais.

Minhas palavras ferem?

Meus atos me orgulham?

Eu estou fazendo algo melhor?

Eu realmente estou mudado?

Eu tenho algo precioso?

Eram questões de conclusões estritamente pessoais e talvez egoístas, entretanto eu precisava reformular meu próprio ego a fim de adequar os meus novos objetivos. Eu só quero ser feliz.

Uma característica que eu passei a admirar de um certo alguém da Grifinória era que se você tivesse pelo que lutar, tivesse pelo que proteger, o poder conquistado com aquilo era maior que qualquer poder das Trevas, apesar de que eu não ansiava necessariamente tal coisa, era somente fruto do que esperavam de mim, eu me esforçava genuinamente nas aulas, modéstia a parte eu tinha boas habilidades comumente elogiadas por meus professores, dominava complexidades não esperadas para mim, mas sabia em meu interior que muito do que fiz não estava certo, ainda que me dissessem que fosse, o meu certo e errado classificava autonomamente e o medo se instaurava quando eu sabia o quão errado estava sendo.

Divaguei pelo longo trajeto sem trocar palavras com Astoria, quando a arruaça começou no corredor despertei notando que finalmente chegamos ao cenário de boa parte de nossas vidas. Minha companheira de cabine me olhou fixamente por longos segundos antes que eu tomasse coragem de encará-la.

-Não vai descer? - inclinou o corpo para frente e seus lábios se curvaram levemente em um meio sorriso.

-Vou esperar um pouco, é um saco todo mundo me olhando desse jeito. Eles têm seus motivos.

-Então espero com você. - voltou a posição que estava e empunhou a varinha apontando para seu desenho.

Aguardamos por um longo tempo até que ela se levantou, dobrou e destacou a folha a qual desenhava e me entregou, com um aceno casto ela se foi me deixando só na cabine.

Coloquei o presente de Astoria sob o braço e juntamente com minhas coisas me guiei pelo caminho já trilhado tantas vezes que se largasse meus cabelos loiros no chão eles voariam sozinhos até o salão principal de Hogwarts. Ao longe vi a última carruagem, apressei o passo mas ela começou a andar, foi então que uma voz se ouviu.

-Espera! Draco corra, se não vai ficar para trás! - Astoria se levantou, sua capa dançava no vento forte daquela noite sem estrelas.

Alcancei a carruagem e me sentei olhando para o chão, sentia o olhar de Astoria em mim, mas não dei importância. Minhas mãos estavam suadas e eu batucava o pé no chão inquieto.

-Vai acabar abrindo um buraco. - era a voz de Rony. Levantei a vista e ele me olhava com um meio sorriso.

Ele estava ao lado esquerdo de Astoria e ao seu lado estava Hermione, prendendo o riso enquanto lia um livro de feitiços, Gina ao meu lado e Harry logo em seguida. Ele tinha um olhar distante porém parecia tranquilo.

Astoria, a minha frente, fitava-me interrupta. Quanto desconforto aquilo me trazia ao mesmo tempo que me confortava, todos me olhavam esperando algo, bom, ruim, inusitado, mas não ela, era somente um olhar enfatizando que não esperava nada além uma retribuição igual. O quanto meu coração era capaz de bater por minuto visto que era a primeira vez em minha vida sem pressão, olhando para uma garota, seguindo qualquer caminho que eu queira? Era errado eu estar me sentindo assim? Por tudo que fiz, tudo que falei, era merecido aquele olhar e aquele feitiço que Astoria estava me lançando?

Não podia ser justo, não podia ser digno de tal, mas a parte de me reconhecer de novo é abrir brechas para este questionamento e restabelecer novos sentimentos.

Enfim na ala masculina da Sonserina, permiti-me retirar a capa e afrouxar a gravata, deslizei a mão pelos cabelos e lembrei do presente de Astoria. Segurei o grosso papel A1 e o desdobrei cuidadosamente, nele havia escrito no canto inferior direito com uma caligrafia impecável "Draco", eu estava desenhado, e com a magia de Astoria, o eu que olhava para a janela do trem direcionava um olhar suave para a artista, um olhar que eu não sabia que existia vindo de mim. Conforto. Tranquilidade. Segurança. O eu estava claramente rendido ao feitiço da artista.

Era errado, pela primeira vez, sentir o mundo parar por uma garota?

O Feitiço da SonserinaOnde histórias criam vida. Descubra agora