Capítulo 5

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Huma hora e três quartos mais tarde
Villa Bella da Santíssima Trindade, capitania de Matto Grosso
Estado do Brazil


A noite estava mais escura do que o normal. Era quase hora do amanhecer, portanto. O servo perdido dos Távoras, olhando a boca negra da noite, iluminada tão somente por pequenos pontos brilhantes e esparsos, uma vez que até a lua se escondera, benzeu-se da melhor forma que pode.

A parca iluminação não permitia que ele tivesse uma visão boa do espaço em que se encontrava, ainda mais com a enorme Igreja que cobria a praça ao lado da rua onde estava. Ao seu derredor, toda uma multidão de homens recém-acordados – alguns rapazotes; outros, idosos já – empunhavam todo o arsenal que haviam encontrado, que se resumia a uns 20 arcabuzes, quase 15 mosquetes, 34 bacamartes e tudo o mais que se puder imaginar: facas, baionetas soltas e até mesmo pedras.

A madrugada fria e o aguardar eram piores do que o que o encapuzado esperava combater. Sentia o ar gélido tomando conta de seu corpo, enregelando seus ossos. Sacudiu o corpo fazendo a capa farfalhar de leve. Não mais que cinco minutos, e lá estava D. Luís a seu lado.

– E então? O que faremos?

– Por ora? Esperar. Eles já estão quase chegando, e nos separar será pior.

O capitão-general parecia nervoso. Olhou para os lados, mandou alguns rapazes mais para a frente e, aproximando-se do homem desconhecido, sussurrou:

– Já enfrentaste algo desse tipo?

– Sinceramente? Nem sabia que coisas assim eram passíveis de existir.

– Pois... Temos chance de vitória?

– Talvez... Pode ser que o Deus de d. Miguel esteja ao nosso lado – o homem virou-se para o capitão – Mas o mais importante é qu...

D. Luís não teve tempo de saber o que seria tão importante. Gemidos de morte, lancinantes sinais de mau augúrio, foram ouvidos vindo detrás do palácio. Quando se recuperou, o servo não mais lá estava. Já tinha corrido para o meio dos combatentes, incitando-os a ir para as proximidades, lugar em que poderiam se esconder, se preciso fosse. D. Luís de Albuquerque, porém, não seguiu o exemplo. O sangue falou mais alto e ele chamou uma pequena tropa para agir como batedores com ele.

Não precisaram, porém, ir muito longe. Assim que os organizou, estranhas figuras surgiram entre o palácio e a igreja, começando a lotar a rua. Andavam lentamente, algumas se arrastando, formando uma estranha aparição. Junto a eles, lançava o sol seus primeiros raios preguiçosos, varando a escuridão.

Sob à luz primeva do sol, era possível ver as roupas rotas balançando ao sabor do vento. As manchas de sangue eram nítidas também, por sobre as peles ebâneas e luzidias dos escravos que marchavam com sede de vingança.

De repente, ouviu-se um estampido, seguido diretamente pela fumaça que saía do arcabuz na mão de D. Luís. O tiro acertara em cheio no peito de um dos negros que vinham em sua direção, a bola de chumbo de quase uma polegada causando um estrago por onde passou. Ante ao acontecido, d. Luís animou-se vendo o ex-escravo prestes a cair. Contudo, o sorriso morreu em seus lábios tão logo percebeu que o homem continuava andando como se nada o tivesse acertado.

A ação não passou despercebida pelos cidadãos, que logo começaram a gritar sobre o Apocalipse e a Ira Divina enquanto outros desertavam ou se ajoelhavam para rezar. D. Luís, pálido e seco como folha de pergaminho, permanecia estático enquanto a horda marchava em sua direção que nem percebeu quando o retiraram de onde estava.

Assim que voltou a si, viu que o servo liderava a luta ao lado de Pompino. O capuz daquele, porém, se desprendera, revelando um corpo de proporções agradáveis ao olhar, com cabelos castanhos-mel caindo por sobre os ombros. Isso, porém, até que, com um floreio da lâmina que usava, o homem virou-se para o capitão-general.

O rosto, que outrora talvez tivesse sido belo, parecia derretido. Parte da pele da testa havia caído, cobrindo o olho esquerdo e deixando o branco do osso do crânio à mostra. A ponta do nariz não existia, e a metade esquerda da boca parecia corroída, com os lábios secos como se de areia, assim como a pele da bochecha do mesmo lado, que parecia com um pergaminho antigo.

Os oponentes, porém, pareciam não temer semelhante visão. Continuavam vindo aos montes, por vezes sem algum dos braços, decepado por alguma baioneta desavisada, ou com um pedaço faltante da cabeça, explodida por algum mosquete.

Os gritos de Pompino e do servo ecoavam, orientando a todos a destruírem as pernas e a arrancarem as cabeças, se possível, só sendo abafados quando acabava a munição de alguma das armas e o infeliz atirador, ainda vivo apesar de seu corpo exangue já ter-se ido ao chão, tinha nacos de sua carne arrancados de seu corpo pela multidão de mortos-vivos que o rodeavam.

Restavam pouco mais de 30 andantes de pé quando um barulho infernal, como se o chão estivesse se abrindo, fez com que todos parassem de lutar. Os negros mortos-vivos afastaram-se, indo em direção ao barulho, deixando os homens da cidade, ainda vivos, atônitos e ansiosos.

Ouviu-se, então, vindo de algum lugar, um som de atabaques batendo de forma ritmada. Os não mortos, ao ouvirem, puseram-se de joelhos – na realidade, só os que ainda os tinham o fizeram – e abaixaram as cabeças.

Surgiu então, como se materializado a partir do ar, um homem alto e negro junto com uma mulher, também negra, mas tão baixa quanto ele era alto. Trajado à moda real do Ndongo, o rapaz trazia, em suas mãos, a cabeça de Teresa de Benguela de olhos fechados.

A rainha, pois, que tinha nas mãos uma tiara dourada, cravejada de pedras, adornou a própria cabeça. Nesse instante, o séquito de mortos vivos ergueu as cabeça, seus olhos rumo aos dois recém-chegados protagonistas da cena, enquanto ele auxiliava a eterna regente do Quariterê a posicionar corretamente a cabeça por sobre os ombros.

A alteza, então, dirigindo-se aos seus súditos, saudou-os de forma respeitosa, sendo respondida com uma tocante devoção. Em umbundu, exortou-os ao descanso, agradecendo pela disposição em lutar por ela. Um a um, então, a altiva soberana os tocou com a ponta dos dedos, transformando-os na poeira que eles já deveriam ser e, enfim, concedendo-lhes o descanso tão merecido.

Quando o último dos ex-escravos foi varrido pelo tempo, o semblante da rainha, ainda de olhos fechados, até então doce e compassivo, fechou-se, as sobrancelhas cerradas, os lábios comprimidos e com as pontas voltadas para baixo, como se ela estivesse se controlando para não matar ninguém.

E assim que, vagarosamente,ela foi descerrando as pálpebras, os combatentes de Vila Bela perceberam que talvezela realmente até estivesse.

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O Quilombo Maldito (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora