Capítulo único

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Ela escrevia por horas intermináveis. Postava-se diante da janela que dava para a minha, sempre no período da tarde, e com o ombro direito encostado no batente e o caderno de capa azul apoiado no joelho, começava a escrever. E naquela posição, sem descansar o lápis por mais de cinco segundos, ficava até anoitecer. Depois de ter escrito bem umas dez páginas, fechava o caderno e desaparecia no interior da casa.

Havia uma semana que sua família mudara-se para o novo apartamento. Ficava no sexto andar de um prédio antigo de cor amarelo-desbotado, com uma janela frontal e outra lateral, que dava para a rua em que eu moro.

Estava na janela de casa quando vi o táxi parar em frente ao prédio. Primeiro, uma mulher e um homem saíram do carro discutindo: parecia estar havendo uma briga séria entre os dois, pois a mulher falava alto e o homem gesticulava de forma agressiva. Ele levantou o dedo para ela e a mulher apontou para dentro do táxi, nervosa.

Nesse momento, eu a vi descendo do veículo com um vestido azul-claro de alça, o cabelo solto até a cintura, castanho, e o rosto mergulhado numa surpreendente serenidade, numa expressão de inabalável sensatez, que em tudo contradizia a atitude comum de uma adolescente frente a uma discussão dos pais. A figura da garota, ausente, distraída, destacava-se naquela cena de tensão familiar; era como uma rocha no meio do oceano, indiferente ao bater violento das ondas sobre si.

Apesar disso, notei no fundo de seu olhar, algo semelhante a uma tristeza - talvez melancolia.

Quando a vi de novo, foi numa tarde de sábado. O sol já se ia em direção ao horizonte e eu me apoiava na janela com a minha câmera nova para fotografar algumas nuvens avermelhadas pelo entardecer. Foi então que surgiu na janela, do lado oposto da rua, com a mesma serenidade impenetrável no rosto alvo de queixo pequeno e olhos verdes-escuro que havia notado na primeira vez em que a vi. Tinha nas mãos o caderno azul e o olhar perdido em algum ponto do céu à esquerda do meu prédio.

De repente, seus olhos estáticos se puseram em movimento, arrastando-se lentamente em direção à minha janela, até enfim se esbarrarem com os meus, para depois de um minuto de embaraço, se afastarem ligeiramente ao grito de uma mulher no fundo da casa.

Apesar de tocado pela emoção do momento, pude distinguir o nome gritado: Helena.

A partir desse dia, ficava todas as tardes na janela do meu quarto, a fingir que observava o céu ou os pombos nos terraços, na esperança de vê-la. Quando algum amigo me chamava para dormir em sua casa, eu desconversava, inventava gripe, infecção, trabalho de escola, tudo para ficar no meu quarto, esperando Helena aparecer na janela, com seus olhos pscianos, sua expressão concentrada, séria, formando uma impenetrável camada atrás de seu rosto sardento, que a fazia parecer muito distante das coisas do mundo e impossível para mim.

Um dia Helena finalmente apareceu. Sentou-se em frente à janela, e sem lançar sequer um olhar para fora, pôs-se a escrever. Escreveu a tarde e a noite inteira, sem parar. No dia seguinte, também. E no outro. Tive, num desses dias em que a contemplava em sua incansável tarefa, a ideia de fotografa-la - já que nunca reparava na minha presença, era seguro.

Mas, ao olhar na câmera as fotos tiradas - todas mostravam-na na mesma posição, com a cabeça inclinada para o lado, a olhar para o caderno em cima do joelho flexionado - exceto a última foto, que continha uma pequena alteração: Helena com o rosto virado na direção da câmera e com um sorriso sutil desenhado nos lábios.

Ao abaixar a câmera intuitivamente, explodi em silêncio: Helena me sorria do outro lado.

Pensei que aquilo devia ser um sinal de aproximação - como o sinal verde em um semáforo indicando "siga", o sorriso de Helena dizia-me para ir em frente. Mas como fazer isso?

Poderia bater na sua porta com a desculpa de que meu gato havia sumido e se ela não o tinha visto por aí. Provavelmente iniciariamos uma conversa sobre gatos e cachorros nossos que faleceram tragicamente e Helena me convidaria para entrar. Ficaríamos amigos e não demoraria muito surgir a oportunidade certa para lhe contar sobre todas as vezes em que eu...

Mas, e se ela me achasse muito esquisito? E se me rejeitasse? Não! Melhor seria mandar-lhe uma carta e assim poupar-me da vergonha. Poderia pedir para alguém entregar por mim ou eu mesmo subir escondido até o seu apartamento e colocar por baixo da porta...

Mas seus pais poderiam achar a carta antes ou o zelador poderia me pegar tentando subir as escadas sem autorização... A verdade é que ela apenas sorriu para você! Acorda! Isso não significa que ela goste de você. Ela apenas sorriu para um vizinho do outro lado da rua. Só quis ser gentil...


Pensei em tudo isso enquanto Helena ainda me sorria. Sorri de volta sem saber como agir. Era o segundo contato de verdade que tínhamos - pelo menos eu sentia que era um contato -, mas a primeira vez em que senti que Helena talvez não fosse tão inalcançável assim. Ela parecia mais próxima, mais real. Um homem aproximou-se da janela, provavelmente era seu pai, Helena imediatamente retomou sua fisionomia de sempre - lábios retos, olhar distante e gestos indiferentes. O homem então a pegou pelo ombro e a levou para dentro.

Na manhã do dia seguinte, acordei cedo. Escrevi uma carta e dentro do envelope coloquei uma foto de Helena. Então corri as escadas com a intenção de entregar pessoalmente a ela. Mas, ao chegar no portão, notei uma movimentação estranha na rua. Um enorme círculo de pessoas havia se formado em frente ao prédio de Helena.

Me aproximei para ver qual era o motivo de toda a agitação. Foi quando ouvi a palavra suicídio... Uma senhora ao meu lado fez o sinal da cruz; no meio de uma poça de sangue, jazia um corpo, e ao seu lado, um caderno de capa azul.

A garota na janelaOnde histórias criam vida. Descubra agora