Olhos negros

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A casa continuava silenciosa quando cheguei.

Onde será que estavam?

A fome se apoderou de mim, me fazendo ir direito para a cozinha, onde encontrei quase tudo o que gostava. O que excluía qualquer tipo de carne.

Decidi ser vegetariana aos dez anos ao ver um documentário sobre matadouros. Apesar de tudo, meu tio havia se lembrado.

Preparei um sanduíche de pão com queijo e saciei minha fome. Já de estômago cheio, o aborrecimento veio novamente. Não tinha ninguém em casa.

Subi as escadas pensando no que fazer. Lembrei-me da biblioteca que Irina falara. Pelo corredor fiquei curiosa para ver o quarto dos meus primos. Não tinha ninguém em casa mesmo. Logo minha curiosidade foi frustrada, todos os quartos estavam trancados. Ok. Meus queridos parentes temiam que eu roubasse alguma coisa?

A enorme biblioteca tinha pilhas e pilhas de livros velhos. O engraçado é que eu gostava do cheiro dessa atmosfera, da sensação de estar diante de portais para outros mundos e épocas. Outras vidas.

Ao caminhar entre as prateleiras, meus olhos se depararam com o livro "O mito dos vampiros". Depois de tudo o que eu presenciara na cidade, não pensei duas vezes e o peguei.

Sentei-me à mesa, abri uma página aleatoriamente.

Em 1632, o assassino, James Spaldem, após ser enforcado e enterrado — não estando realmente morto — saiu de sua sepultura, inconsciente por causa de sua execução malsucedida, e andou pela cidade. Então as pessoas acreditaram que ele voltara dos mortos.

Em 1700, o medo de vampiros se espalhou por toda Europa. As mortes e as doenças eram atribuídas a vampiros, pois não sabiam sua causa.

Muitas vezes os doentes não suportavam a luz do sol, eram extremamente pálidos, lábios vermelhos e tinham crises com a ingestão de alho.

Com a chegada do Iluminismo, os médicos diziam que se tratava de porfiria, cuja cura seria ingerir sangue.

As pessoas não sabiam como um corpo sofre o processo de decomposição, então viam que as unhas, o cabelo e barba continuavam a crescer, mesmo o corpo estando morto.

Muitas vezes com o canto da boca suja de sangue e a barriga inchada, era como se tivessem saído da sepultura, se alimentado e voltado a dormir. E assim passaram a prender os mortos com estacas em seus caixões, para que não pudessem se levantar...

Caminhava numa estrada enevoada, o ar frio entranhando meus ossos. Tudo o que eu podia ver era a silhueta espectral das árvores ao redor, porém à medida que me aproximava de uma delas e a névoa se dissipava, vi um homem enforcado à minha frente, seu corpo inanimado, o ranger da corda ao balançar de um lado para o outro, como se sua execução tivesse sido há poucos segundos.

Aterrorizada eu queria correr, mas meus pés não me obedeciam. Fiquei lá, trêmula de olhos arregalados olhando para ele, para seus olhos fechados, que se abriram.

Estremeci violentamente.

Acordei com o coração disparado, o livro aberto sob a minha bochecha. De alguma forma seu conteúdo fora parar em meus sonhos.

Meu corpo doía, meu pescoço doía mais ainda. Ao levantar cuidadosamente a cabeça, um homem que nada tinha a ver com o do sonho, encarava-me, um belo sorriso brincando em seus lábios.

Será que eu estava mesmo acordada? Ou pulara do pesadelo para um sonho muito agradável? Sem saber ao certo, me perdi em seus olhos negros.

— Não gostou da leitura? — perguntou ele, sua voz era grave e aveludada.

Escapar ( Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora