Parte III

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Aquela manhã trágica demoraria a sair das lembranças dos guaranis da Missão de São Miguel. Todos se recordariam por muito tempo a tragédia que matara a mãe de Caiubi. Uma morte que viera de seu próprio filho.

Quando o ataque do morto-vivo ocorreu, alguns índios assustados, principalmente os mais novos e as mulheres, pegaram os cavalos dos estábulos e fugiram para outras missões. Lá contaram o que havia ocorrido em São Miguel, apavorando alguns e descobrindo mais informações com outros.

Dizia-se que algo semelhante ocorrera com a missão de São Borja. Um dos índios também sumira e apenas o corpo fora encontrado já morto, sem inimigo por perto, um dia depois. Enquanto velavam o rapaz, seu cadáver se levantou e atacou de surpresa uma dezena de pessoas, causando ferimentos em todos. E o morto-vivo só parou quando um dos caciques conseguiu bater com sua cabeça no chão até que fosse completamente esmagada e voasse massa encefálica para todos os lados. Mas a morte fora tarde demais e o estrago havia sido feito.

Cada um dos feridos também foi transformado em uma criatura semelhante a que se levantara contra eles. Dez zumbis se ergueram na missão de São Borja e atacaram a redução. Até que contivessem e matassem os seres – incluindo os novos que foram sendo criados com suas mordidas – mais de 120 índios perderam a vida.

Ninguém ouvira falar de um acontecimento daqueles antes e os indígenas e jesuítas foram levados a crer que se tratava de um castigo de Deus por não cumprirem as ordens espanholas. Para amenizar os estragos e não sofrer mais riscos, preferiram abandonar suas terras e cumprir o que lhes foi imposto. Mas não sem antes espalhar às outras tribos o que aconteceu a eles e preveni-los.

Foi assim que a redução de São Miguel soube que aquele não era um caso isolado e soube também o que fazer naquela situação. Eles não permitiriam que tantas vidas fossem perdidas como em São Borja. Para isso, antes de enterrar os dois corpos – de Caiubi e de sua mãe – esmagaram suas cabeças e acertaram seus corações com uma lança. Por precaução. Os padres jesuítas não foram a favor do ato, mas contra a maioria, não teve muito que pudessem fazer.

— Padre — Sepé chamou Lourenço Balda, quando saíam do cemitério, após o enterro. O homem de meia idade e cabelos brancos se virou para trás e aguardou que o índio o alcançasse. — O que o senhor acha que foi isso? Será mesmo que foi uma punição de Deus?

— É possível, Joseph. Mas não podemos ter certeza.

— O senhor não diz que o Deus é amor e que Ele ama seus filhos e os perdoa?

— Sim.

— Então por que Ele fez isso? É um pecado tão grande lutar pelo que é nosso? Essa terra é nossa. Essa terra tem dono. E não são os homens brancos. O senhor mesmo disse que Deus tinha dado ela pra nós.

— Não é tão simples assim, filho. Isso envolve muito mais coisas. Mas eu garanto que vocês não são pecadores. Deus não seria capaz de fazer isso. Caiubi era um inocente. Ele não tinha pecados. Isso deve ser alguma doença.

— Uma doença do homem branco? — perguntou Sepé Tiaraju rememorando a doença que tivera na infância e que lhe deixou marcas na testa.

— Provavelmente. Mas nenhuma que eu conheça ou que tenha lido a respeito.

— E tem alguma maneira de curá-la?

— Não que eu tenha conhecimento. Mas enviarei uma carta à Companhia, perguntando a respeito e solicitando ajuda. Por enquanto devemos evitar sair sozinhos pela mata. Pode ser algum animal infectado.

— E o senhor não acredita que seja o homem branco fazendo isso para que a gente saía daqui?

Os dois pararam de andar e Pe. Balda encarou Sepé:

— Contaminando os índios de propósito? — Sepé fez um gesto afirmativo com a cabeça. — Não pense o pior, Joseph. Nós somos todos irmãos no amor de Cristo, índios e brancos, somos todos filhos de Deus. Eles não fariam isso.

Entretanto, padre Balda sabia o quanto era grande a ambição de um homem e o que ele poderia ser capaz de fazer para alcançar seus objetivos. Não deveria subjugar ninguém. Haviam muitas chances da suposição de Sepé estar correta. Mas não valia a pena contar isso a ele. Já haviam preocupações de mais no momento.

* *

Sepé era astuto e presumindo que os espanhóis e portugueses se aproximavam para a tão esperada batalha, mandou intensificar os trabalhos, fazendo com que todos os artesãos produzissem armas, lanças e flechas, os comerciantes tentassem comprar pólvoras e armas de fogo e os mais novos aprendessem a manejar tacapes e arcabuzes, além do arco e flecha rotineiro. Além disso, avisou a todos os outros corregedores e pediu para que se preparassem.

Assim, quando chegou a notícia que a tropa de Gomes Freire deixava o forte de Jesus-Maria-José para se encontrar com os espanhóis, Sepé saiu com seus soldados e solicitou a presença dos demais guaranis chefiados por Nicolau Nhenguiru e os outros corregedores. Porém, antes que todas as Missões fossem avisadas e pudessem se reunir com a tropa de Sepé, os adversários se aproximaram.

De longe, sobre um planalto, os guaranis avistaram o exército dos inimigos vindo. Eram centenas de homens que marchavam a pé, de forma lenta e com dificuldade, vestidos com poucas roupas e não aparentando carregar armas.

— Alguma coisa está errada! Esses não são homens brancos – gritou Sepé, assim que se deu conta.

— Não! Parecem ser índios! — alguém concordou.

— Eram índios — quanto mais se aproximavam, mais se fazia possível notar os detalhes que identificavam aqueles seres. Roupas rasgadas, corpos sujos de barro e sangue, além de partes dos corpos faltando. — Eles estão mortos! É um exército de mortos-vivos. Os homens brancos mandaram um exército de nossa própria gente para nos aniquilar!

E de fato fora o que a Coroa Portuguesa em parceria com a Coroa Espanhola fizera. Com a maior discrição e sigilo, capturaram os índios presos pelos bandeirantes e deram a eles uma descoberta que há pouco havia sido feita: um vírus capaz de transformar qualquer ser humano em um morto-vivo sem mente e insaciável por carne humana.

Aqueles seres seriam capazes de matar os poucos homens de Sepé em questão de minutos. Precisariam encontrar uma forma de impedi-los de seguir a diante sem confrontá-los diretamente. Se conseguissem passar pela tropa guaranítica, logo estariam atacando as missões e matando mulheres, crianças e idosos.

Optaram por descer ao rio Camaquã. Pela rota que os mortos-vivos seguiam não demoraria muito para que tivessem que transpassar o rio. E quando o fizessem estariam vulneráveis e prontos para que os guaranis os atacassem do outro lado. Porém não podiam contar apenas com isso, precisavam de uma arma a mais.

E seria uma cortina de fogo em paralelo com a margem do rio. Sabiam que o fogo queimaria e mataria os mortos-vivos e sabiam também que eles não possuíam muita inteligência para distinguir as chamas em meio ao restante da mata.

Dito e feito! Os zumbis caíram direto na armadilha dos índios. Todos foram em linha reta até a cortina de fogo formada próximo ao rio. Só se davam conta e recuavam quando as chamas já os consumia, tarde demais. Em poucos minutos o que restou do corpo deles caía ao chão e terminava de ser queimado, alimentando o restante do fogo e aumentando o incêndio na mata.

Quanto mais mortos-vivos caíam sobre as chamas, mais difícil ficava para os outros resistir ao incêndio. A área queimada já era o dobro da que os guaranis incendiaram. Porém, alguns, ainda assim, conseguiam atravessar o fogo e cair no rio, nadando para o outro lado. Esses poucos que transpassavam as águas eram mortos assim que pisavam mais uma vez em terra firme.

Após terem se certificado que todos os mortos-vivos tinham sido mortos e que o incêndio fora contido, os guaranis retornaram as suas reduções, comemorando a vitória e esperando que os homens brancos desistissem da batalha. Mas, se ela ainda prosseguisse, estariam preparados e prontos para enfrentar os zumbis mais uma vez. 


  (Total de Palavras: 1340 - segundo o Word)  

Essa terra tem dono, zumbis!Onde histórias criam vida. Descubra agora