Só mais alguns dias, querida.

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Minha filha corre atrás da sua filhinha levada de quatro anos que quase quebrou uma porcelana e dá um bronca no meu outro neto que está puxando a cauda do Luke, meu cachorro. Eles vieram me fazer uma visita aqui em casa antes de viajarem no feriado. Aproveito para desfrutar o momento de bagunça na minha sala; depois que Ana cresceu raramente há gritinhos infantis e passinhos apressados peso piso de madeira antiga. Apenas jogos de cartas com meu queridos amigos velhotes, por isso não me incomodo nem um pouco. Acho divertido na verdade, pois vi essa mesma cena algumas décadas atrás.

Olhando para ela agora, ela parece muito com sua mãe. Não. Ela é igualzinha a Dulce quando nós éramos um casal jovem. Linda e enérgica. Um verdadeiro furacão humano, por onde passa deixa sua marca.

Dulce me ensinou muitas coisas enquanto estivemos juntos. A dançar, a parar e observar o céu apenas por diversão, a arrumar sempre minha gaveta de meias, já que ela ficava furiosa quando estava bagunçada. Ela me ensinou a não levar a coisas tão a sério e ser uma pessoa mais leve e divertida e me mostrou que pessoas como ela são boas demais para ficarem muito tempo pela nossa vida. Viajamos juntos, cozinhamos juntos, tivemos uma filha juntos, corremos no parque juntos. Éramos jovens e cheios de sonhos para realizarmos juntos.

Dulce foi o amor da minha vida. Cada dia que eu pude acordar ao lado dela era um presente para mim. Mesmo com algumas dificuldades aqui e acolá, fomos muito felizes. Brigávamos sempre, e talvez por isso sempre tivemos um relacionamento bom: as reconciliações deixavam tudo melhor. Ela era calmaria, flores de primavera, ressaca do mar, um tufão e uma brisa tudo ao mesmo tempo.

Me deixava fora da casinha aquela mulher. Ela era intensa e divertida. Às vezes me deixava furioso também, mas na maior parte do tempo, feliz. Dulce era meu porto seguro.

Quando Ana tinha doze anos, Dulce se foi. Sempre disse à minha filha que o coração da mãe dela era tão grande e cheio de afeto para repartir com a pessoas que passaram pela nossa vida que ele não aguentou muito mais anos. Em seu último minuto de vida, ela estava gargalhando de um piada que estávamos contando aqui mesmo nessa sala. Uma morte que dá inveja a muitos, foi feliz até seu último suspiro.

Se eu dissesse que foi fácil passar pela partida dela, mentiria. Mas no momento em que o caixão foi baixado, só uma palavra permeava minha mente: GRATIDÃO.

Sou grato por ter encontrado amor quando maioria das pessoas não tem a mesma sorte. Sou grato por ela ter me deixado uma cópia sua para eu cuidar e não me esquecer de como ela era: Ana herdou tanto a aparência como a personalidade de Dulce. Sou grato por ter sido a pessoa que ela escolheu passar a breve vida dela ao lado. Sou grato por ela ter passado pela minha vida.

Eu não digo que amava ela. Não posso dizer esse verbo no passado quando a ação ainda se realiza. Eu a amo. No presente. Todos os dias. Sempre me pego dizendo para a nossa foto no corredor:

- Só mais alguns dias, querida. Seu velho já está chegando.

Aprendi a aproveitar a vida mesmo ela não estando mais presente, já que eu levaria uma bronca da Dulce caso eu não fizesse isso. Aproveito meus netinhos, jogo poker com meus amigos, cultivo um jardim, faço alguns cruzeiros... Vivi meus anos plenamente. Mesmo assim, posso dizer que me sinto ansioso pelo dia em que as Moiras cortarão meu fio: Minha linda Dulce está lá me esperando. Só mais alguns dias, querida. Seu velho já está chegando.

Contos que não são para sempreOnde histórias criam vida. Descubra agora