Memórias

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Acordo cedo para aproveitar enquanto as crianças ainda não estão acordadas para poder tomar meu café em paz. Pego minha caneca de café quente, dou um beijo no meu marido que lê jornal na poltrona perto da lareira e me sento na outra com um cobertor no colo. Enquanto a neve cai lá fora eu observo um desenho da Sarah - minha filha que entrou na escola este ano -, no centro da cena colorida com lápis e canetinhas, dois bonecos palitos de mãos dadas. O gatilho perfeito: Cenas há muito esquecidas começam a permear minha memória.

Uma turma de crianças de seis anos colorindo o abecedário e uma professora com olhar bondoso. Risinhos alegres e infantis enchem o ar enquanto meninas discutem qual a melhor cor para se colorir a letra D: Rosa ou lilás?

Cachinhos louros se levantam de uma das carteiras e saltitam com o lápis cor de rosa e um apontador na mão em direção à lixeira. Um cabelo liso em corte tigelinha faz o mesmo, mas ele vem apontar o lápis verde.

—A Ana me disse que você é minha namorada.

—Isso quer dizer que nós dois estamos namorando?

—Acho que sim —ele assente sério e recebe um sorrisinho doce com uma janelinha nos dentes de leite.

No dia seguinte, a menina dos cachinhos ganhou um desenho do menino de cabelo tigelinha: dois bonecos palito de mãos dadas num cenário de árvorezinhas que pareciam algodão doce verde num palitinho e passarinhos representados por belas linhas em V.

Outro dia, a menina pegou na mão do menino durante o recreio . Eles falavam sobre seus brinquedos e que tipo de arte faziam com suas massinhas de modelar. Eles se cansaram e logo ele foi jogar bleyblade e ela foi montar um quebra-cabeças com suas amiguinhas.

Ela ganhou uma florzinha meio despetalada e murcha, mas achou linda. Ele achou o máximo sua florzinha nos caracóis bagunçados dela. Não se sabe o que houve com a flor, mas deve ter caído quando os cachinhos louros esvoaçavam no balanço.

Tudo que a mulher de cabelos loiros rebeldes se lembra hoje, é do sorriso tímido do seu namoradinho da primeira série. Eu não lembro o nome dele, e tenho certeza que não o reconheceria na rua ou na padaria da nossa cidade natal.

Não me lembro de ter havido um término. Apenas que em algum momento de brincadeiras nos esquecemos completamente do nosso romance. Tão inocente quanto começou, terminou. Ou não, não houve nenhuma quebra, nenhuma ruptura. Nada de corações partidos ou lágrimas derramadas no travesseiro rosa como anos depois com seu namorado da adolescência ou seu outro namoradinho da faculdade ou como quando ela brigou com o homem que hoje é seu marido poucos dias antes do sim.

Eu queria que a Sarah pudesse crescer com essa inocência. Levar os amores que passassem na sua vida como lembranças gostosas e leves no fundo da sua memória. Nós deveríamos fazer o mesmo quando crescemos, ter um tempo natural com quem se ama, e quando chegasse o fim, não fosse um fim pois levaríamos a parte boa conosco.

Corações cheios, não partidos.

Cachinhos loiros ainda sonolentos num pijama de ursinho cutucam meu braço, e eu pego ela no colo.

—Bom dia mamãe!

—Bom dia amor!

—Olha só! Duas princesas lindas em seus pijamas reais. —meu marido sorri para nós e Sarah gargalha.

Onde quer que o menino do cabelo tigelinha esteja, espero duas coisas dele: Que ele tenha outro corte de cabelo e que seja tão feliz e amado quanto eu sou.

Contos que não são para sempreOnde histórias criam vida. Descubra agora