Inverno de 1614

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       "Siga-me rumo a essa escuridão que desconheço mas que planejam para mim . "

As estradas estavam bloqueadas e não era para menos. A nevasca que caía pela terceira semana consecutiva fazia das rodovias um acolchoado de flocos brancos. Era uma paisagem de tirar o fôlego, exceto para os moradores da fazenda de Spring Dior.
A temperatura baixa congelava os dutos que transportavam água do rio para o abastecimento da cidade e impedia os fazendeiros de buscarem socorro na cidade próxima —a desenvolvida Pennsylvania —, por causa da neve acumulada .

As gotas cristalizadas e solidificadas enfeitavam os picos dos pinheiros escoceses que decoravam a entrada da fazenda. Os pés de lavanda estavam em sua fase de castigo pela natureza e não se podia ver o encanto de suas flores lilases, esmaecidas pela estação
Os mármores incrustados no calçamento da propriedade estavam obsoletos sob a brancura gelada e a delicada caixa de correio jazia irreconhecível sob o monturo de flocos. A calçada era longa e enfeitada por trepadeiras de folhas resistentes ao inverno e algumas flores atrevidas apontavam suas pétalas curiosas em direção aos poucos pedestres que passavam por ali,

Jane O'Shea desembocava o milésimo balde cheio de neve para fora da varanda de sua casa. Ela não estava em um bom dia e em parte culpava o inverno por sua grande capacidade de gerar melancolia. Era aterrador encarar uma paisagem completamente branca e gelada. Nem mesmo as árvores enfeitadas com velas para o natal poderia dissipar sua aversão ao clima. O serviço repetitivo de retirar os flocos que se acumulavam ali era cansativo.

Sua mãe, a senhora Bree O'Shea, terminava de aprontar a mesa, exibindo uma suculenta travessa com ave assada, fartas jarras de vinho envelhecido e porções generosas de sopa de soja .

Jane tentou balancear seu humor com o cheiro agradável de culinária materna que assombrava-lhe as narinas. Um sorriso involuntário saiu de seus lábios ao imaginar uma coxa grande e bem tostada derretendo em sua boca. Ela fechou os olhos e deixou que suas mãos trabalhassem, enquanto sua mente a levava até a luxúria da gula .

Seu momento de êxtase foi interrompido por duas figuras masculinas encapuzadas que surgiram na varanda onde ela estava empenhada em retirar a neve .

—A paz, irmã .—a voz severa de Amadeo Rurick assentou em seus ouvidos e ela abriu os olhos , cortando todas as direções de seus pensamentos .

Ela parou com o serviço do balde, despejando o último do lado de fora do cercado e voltando para encarar os recém chegados .

—Padre Rurick! Sempre chegando como um fantasma ... Quantas vezes preciso lhe dizer que tenho um coração frágil ?

Amadeo não sorriu com o gracejo e isso não a surpreendeu . Em seus dezenove anos de vida ela vislumbrou seu sorriso em tão poucas ocasiões que chegavam quase a ser inexistentes .

—Sei que seu coração é tão bom quanto o dos cavalos de corrida de seu pai, menina O'Shea .

Ela relaxou os ombros, deixando o balde de lado e indo cumprimentar a segunda figura, Bryan O'Shea, dono da fazenda Spring Dior e pai dela .

—Papai! Chegaste cedo para o almoço ...

—Querida, como está o serviço com a neve?— o homem mais baixo a abraçou, fazendo um pequeno afago em seus cabelos ondulados .

—Oh céus! Não vejo a hora desse temporal nos abandonar. É deprimente fazer a mesma coisa por horas .

Os três caminharam lado a lado até a cozinha onde a senhora O'Shea terminava de arrumar os talhares .

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