Não foi um sonho

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Acordei, horas mais tarde, pronto para o "verdadeiro" primeiro dia. Mas antes que qualquer outra coisa, tinha de me ir ver ao espelho; e eu, inocentemente, à espera de ver o meu corpo masculino, encontrei-me outra vez com aquele cabelo castanho que chegava 5 centímetros mais abaixo dos ombros, com esses traços delicados, com a pele suave, com as unhas compridas, com as ancas mais largas do que me lembrava e, principalmente, com o peito; um peito bastante bonito que tive a oportunidade de ver em condições quando tirei a camisola do pijama de gatinhos; era um peito bastante bonito, sem dúvida se tivesse uma namorada com um peito assim, eu não me iria queixar.

Quando dei por ela, já tinham passado 15 minutos desde que tinha entrado na casa de banho e tive de me despachar à pressa pra ir apanhar o autocarro. Abri as gavetas e a imaginar, acertadamente, que ainda sendo rapariga a minha roupa estaria na mesma disposição, agarrei as peças que pareciam combinar melhor e continuei.

Reconheço que me descolocou um pouco quando o meu pai falou para mim:

-Então filha, adormeceste e agora estas mal de tempo?

-Eu... Sim! Eu adormeci... sinto imenso- Nunca fui lá muito bom a disfarçar -Bem, tenho de ir!- E saí de casa apressadamente.

Passei a viagem no autocarro a pensar no pouco que sabia: "antes era um rapaz, agora sou uma rapariga; ninguém se lembra que era um rapaz, todos atuam como se sempre tivesse sido uma rapariga. Isto era uma loucura, eu não me podia ter tornado numa rapariga". Estaria ainda a sonhar? Não parecia ser um sonho e, sinceramente, o dia anterior não tinha parecido um sonho. O melhor que podia fazer era esperar até que isto "passasse"? Ou ir visitar o Governo e explicar a minha situação para que eles reúnam uma equipa de científicos e investigadores? Sem dúvida era melhor esperar, eles não iriam acreditar em mim.

Durante essa mesma viagem, fiquei a pensar que por instinto tinha procurado um lugar livre ao lado de um rapaz e não de uma rapariga, como fazem as outras. Tinha reparado que a expressão do rapaz ao sentar-me tinha mudado de "na boa" a sentir-se intimidado pela minha presença feminina. Tenho de admitir que o meu feminino aspeto sobre passava as expetativas que tinha feito durante todos aqueles sonhos no Verão.

O autocarro chegou à escola e rapidamente saí dele. Dirigi-me até à porta da minha sala e esperei pelos meus amigos. Amigos próximos tenho vários, mas só coincido com dois na mesma turma, e esses são o Pedro e a Liliana, que por acaso até são os meus dois melhores amigos. Os quais, não demoraram muito em chegar.

-Então, miga- A Liliana sempre tinha dito que eu era ligeiramente feminino e a gozar comigo, dizia que eu era sua amiga; mas desta vez não me chamou assim no gozo.

-Bom dia, Leonor. Preparada para mais um dia?- O Pedro sempre foi o meu melhor amigo, quando éramos crianças não podíamos estar um sem o outro, uma das coisas que eu topava nele era a sua confiança e que se eu tivesse algum problema, ele vinha logo e solucionava.

-Sim, tenho de estar preparado, né? Q-Quero dizer... preparada, tenho de estar preparada- Como disse, péssimo a disfarçar.

Entretanto, chegou o "Stor" de Psicologia e nós entramos prá sala de aula preparados prá seca da introdução ao novo ano letivo.

A aula estava a transcorrer com normalidade, eu estava sentado na mesa da frente ao meio da sala, num lado tinha a Liliana e no outro tinha o Pedro, o qual reparei eu que se virava muito a olhar para mim. Ainda que no dia anterior já tinha ele estado estranhamente atencioso comigo.

Dando o toque, acabadas as apresentações e com o caderno já na mochila, nós três saímos à procura do resto do nosso "gang" pra retomar a conversa Nerd de sempre. A Liliana de caminho falava muito comigo sobre coisas demasiado femininas e eu não a estava a perceber tão bem como pensei que iria. Por outro lado, o Pedro estava mais calado e eu aventurei-me a perguntar:

-Olha, Pedro, sentes-te bem?

-Eu? Sim, não percebo de onde foste buscar a dúvida- Respondeu-me.

-Agora que reparo bem, estas um pouco pálido- Observou, falsamente, a nossa amiga de cabelo roxo ao nível das clavículas; a qual aproveitava qualquer oportunidade para pregar alguma partida.

-P-Pálido?- Por muito confiante que tenha dito que ele é, se teme alguma coisa, é o estar doente; só de pensar que pudesse estar a presentar sintomas do que fosse, fez que ficasse realmente pálido, reação que a nossa colega já esperava.

-Ignora a Li, não estas pálido. Eu estava a referir-me a que estavas muito calado e que pareces ligeiramente nervoso- Tentei acalmá-lo, fazendo que ficasse ainda mais nervoso pelo facto de eu ter reparado.

-Eu... ah...- Era estranho, ele não costumava ficar sem palavras.

Foi neste momento em que a Liliana pareceu perceber o que eu iria demorar bastante mais tempo em perceber e afastou-se um pouco, à espera de disfrutar de um pequeno espetáculo, o qual não pôde haver pois o resto dos nossos amigos apareceu e o Pedro aproveitou para desviar-se da direção em que o assunto estava a ir.

Não se tocou mais no assunto e quando deu o toque entramos e seguimos o nosso dia. Nesse dia só tínhamos tido aulas de manhã e só tive mais outro intervalo para experimentar resolver o de antes; oportunidade que acabei por declinar, pois achei melhor deixá-lo sossegado, não convinha que se chateasse comigo. A Liliana também não disse mais nada, mas sem dúvida alguma ela tinha ficado a pensar na conversa de antes, não parava de olhar para nós dois e de sorrir pra mim com um olhar insinuante; olhar que não consegui perceber.

Ao finalizarem as aulas eu decidi que ao chegar a casa tinha de começar a investigar o que me tinha passado. Sei que disse que tinha pensado esperar, mas a minha mente passou pela possibilidade de que não fosse passar com tempo e que se eu não fazia nada poderia acabar os meus dias a viver uma vida feminina. Depois de 17 anos a viver como um rapaz, não me imaginava a passar mais 80 como uma mulher.

Lembro-me de ter acendido o computador, de abrir o Google e de escrever as palavras "aparelho reprodutor feminino", palavras que rapidamente apaguei para escrever no seu lugar "troca de corpos na vida real". Passei horas a ler artigos de transexuais, de cirurgiões que faziam trocas de sexo e muito poucos de pessoas que diziam ter acordado um dia com um gênero diferente, sendo isso o que estava à procura, desiludiu-me ter lido todos e ter sentido a falsidade de uma história inventada em cada uma delas. Assim não estava a conseguir nada, e apaguei o computador ao sentir os olhos cansados. E com razão estavam cansados, já passava das duas da manhã! Meti-me na cama e esperei que tudo tivesse sido só um sonho e que ao acordar tivesse recuperado a minha voz grossa.

Durante essa noite tive um sonho, nele eu voltava a ser eu. Tudo era como antes, e eu tentava esquecer esses dois dias, os quais não sabia que seriam os mais "leves". 

Parecia um SonhoWhere stories live. Discover now