que sangue é esse aqui que mancha a pedra do portal deste sepulcro?

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Demorei um pouco a descobrir por onde começar.Você poderia dizer que minha história teve início há mais de 600 anos,com um assalto numa estrada na Toscana medieval. Ou,mais recentemente,com uma dança e um beijo no Castello Salimbeni,quando meus pais se viram pela primeira vez. Mas eu nunca ficaria sabendo de nada disso sem o acontecimento que mudou minha vida da noite para o dia e me obrigou a viajar a Itália em busca do passado.Esse acontecimento foi a morte da minha tia-avó Rose.

Umberto levou três dias para me encontrar e me dar a triste motivo. Considerando minha virtuosidade na arte de desaparecer,muito me admira que ele tenha conseguido. Mas,por outro lado, Umberto sempre teve a insólita capacidade de ler meus pensamentos e prever meus atos e, além disso, havia um número limitado de colônias de férias dedicadas a shakespeare na Virgínia.

Quanto tempo ele ficou lá,assistindo do fundo da platéia a representação teatral, não sei dizer. Eu estava nos bastidores, como sempre, absorta demais com as crianças, suas falas e a cenografia pata notar qualquer outra coisa a meu redor até cair o pano. Depois do ensaio geral daquela tarde,alguém tinha posto o frasco de veneno no lugar errado e, na falta de coisa melhor, Romeu teria de cometer suicídio comendo balinhas Tic-tac.

— Mas elas me dão azia!— queixou-se o menino,com toda a angústia acusatória de um adolescente de 14 anos.

— Excelente!— respondi, resistindo ao impulso maternal de ajeitar a boina de veludo em sua cabeça.—Isso o ajudará a entrar no personagem.

Só mais tarde, quando as luzes se acenderam e a garotada me arrastou até o palco para me bombardear com sua gratidão,notei aquela figura familiar parada perto da saída,contemplando me em meio aos aplausos. Rígido e majestoso como uma estátua,com seu terno e gravata escuros, Umberto se destacava como um junco solitário de civilização num charco primitivo. Sempre fora assim. Desde quando eu me lembrava, ele nunca havia usado uma única peça de roupa que se pudesse considerar informal. Para ele, bermudas cáqui e camisas polo eram trajes de homens aos quais não restara nenhuma virtude,nem mesmo a vergonha.

Mais tarde, quando a investida dos pais agradecidos diminuiu e pude finalmente sair do palco,o diretor do projeto me parou por um instante. Ele me segurou pelos ombros e me sacudiu calorosamente—me conhecia bem demais para tentar me dar um abraço.

— Ótimo trabalho com a garotada, Julie!— comentou, animado.—posso contar com você no próximo verão,não é?

—com certeza— menti,recomeçando a andar.— estarei por aqui.

Enfim me aproximando de Umberto, busquei em vão aquele arzinho de felicidade que costumava surgir no canto de seus olhos quando me via depois de um certo tempo. Mas não havia nem sinal de sorriso e então compreendi por que ele tinha vindo. Aninhando me em silêncio em seu braço,desejei ter o poder de virar a realidade de cabeça para baixo, como uma ampulheta, e fazer com que a vida não fosse um processo finito,mas uma passagem perpetuamente repetida por um buraquinho no tempo.

— Não chorei, principessa— murmurou ele,com o rosto em meu cabelo—, ela não gostaria disso. Não podemos viver para sempre. Ela estava com 82 anos.

— Eu sei, mas... — recuei e enxuguei os olhos.— Janice estava lá?

Umberto apertou os olhos, como.sempre fazia quando se mencionava minha irmã gêmea.

— o que você acha?— retrucou.

Só então,olhando de perto,vi que ele parecia magoado e ressentido, como se houvesse passado as últimas noites bebendo até dormir.Mas talvez isso fosse natural. Sem tia Rose, o que seria de Umberto? Até onde minha memória alcançava, os dois sempre tinham estado atrelados numa parceria necessária de dinheiro e força bruta — ela bancando a beldade que fenecia, ele, o mordamo paciente— e, apesar de suas diferenças, estava claro que nenhum dos dois jamais se dispusera a viver sem o outro.

JulietaOnde histórias criam vida. Descubra agora