Dois

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ERIC


Nova Iorque, tempos atuais.

O barulho constante do trânsito lá embaixo, na rua, faz-me respirar mais fundo, e meus dedos param o trabalho frenético no teclado do computador. Olho para a tela, lendo mais uma vez a tese de defesa que estou montando desde o momento em que acordei.

Levanto-me e vou até a cozinha me servir um café.

Hoje resolvi não ir para o escritório na parte da manhã. Tenho essa defesa para montar e prefiro estar em casa, quieto, para conseguir ler todas as jurisprudências favoráveis ao assunto para montar minha tese e as desfavoráveis para adequar à defesa.

Encosto-me ao balcão para esperar a máquina terminar de passar o café, e meus olhos são atraídos para a máquina de escrever em cima do aparador da sala, mais um artigo raro de decoração do que um instrumento de trabalho. Suspiro.

Houve uma época da minha vida em que eu pensei que seria escritor, como Hemingway, Gabriel Garcia Márquez ou George Orwell. Comprei minha máquina de escrever quando tinha apenas 13 anos, passei meses juntando mesada, porque queria uma especial, uma que contasse uma história em si, independentemente das que eu contaria.

Essa Remington é do mesmo modelo usado por Orwell para escrever seu famoso 1984. Não é a máquina do famoso autor, mas ainda assim tem uma história para contar. Eu ficava às vezes me perguntando quem a teria usado e o que foi escrito por ela. Isso me inspirava, e eu a levava comigo para onde quer que fosse.

Quando meu pai reclamava muito do peso da bagagem e da demora no despacho das malas por causa dela, eu a deixava em casa, mas seguia sempre com um bloco de papel e uma caneta. Tudo à minha volta era motivo de inspiração, e eu, de alguma forma, encaixava o que via nas minhas aventuras, dramas e romances.

Todavia, claro que o filho mais velho de Bill Palmer não seria um romancista. Óbvio que não!

Meu pai sempre viu meu amor pela leitura e escrita como um hobby, não como uma profissão. Os homens da família Palmer não são artistas, são empresários, advogados, juízes ou políticos. Eu, desde meu nascimento, tive meu caminho traçado na advocacia, principalmente por ter recebido o nome do meu avô: Eric.

Olho para minha mão esquerda, onde pesa o enorme anel de ouro maciço da Harvard Law School, anel esse que também era do meu avô, assim como meu nome.

Fito a Remington ali naquele móvel, triste, inútil, apenas um artigo antigo e raro parte da decoração e sinto meu coração apertar ao me lembrar da última vez em que a usei, há três anos.

Rio ao pensar no quanto a vida é surpreendente, e o destino, implacável, pois era inimaginável eu me separar dela, e agora mal a noto durante a correria do dia a dia no escritório. Ali, naquela máquina de datilografar, que para muitos é um instrumento arcaico, eu compus poemas, desenvolvi tramas e escrevi cartas, sempre, é claro, aguentando os deboches de Thomas.

Sirvo o café, disposto a mudar o rumo dos meus pensamentos, mas, depois da notícia que tive ontem – de que Thomas participará da minha festa de noivado no Natal –, meu cérebro parece querer rememorar os anos que, fora a doença e morte de minha mãe, causaram um trauma e uma rachadura na família Palmer.

Na volta para casa após as férias na ilha em Angra dos Reis, no Brasil, há 10 anos, meu pai e Thomas – que nunca se deram bem – passaram a fazer de tudo para provocarem um ao outro.

Minha relação com meu irmão mais novo sempre foi conturbada, de amor e ódio, mas eu sempre fiquei do lado dele quando precisou, afinal, ele era minha família. Quando criança, mamãe praticamente colocou Thomas em uma redoma de vidro, ou uma bolha, e o deixou lá.

DUAS VIDAS - [DEGUSTAÇÃO REVISADA]Onde histórias criam vida. Descubra agora