De carne à lâmina

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O felizardo

Marlon chega do furdúncio, festa, suruba. Está tão bêbado que não se lembra ao certo qual desses é o lugar de onde veio. Não obstante à sua loucura e falta de percepção, o costume prevalece: vai até a cozinha e, cambaleante, com olhos pesados e passos trôpegos, coloca o copo para encher no filtro de barro - não dormia sem antes tomar água. Faz outra coisa indeterminada no fogão e vê que o copo está cheio.

Talagadas desmedidas que lhe molharam, além da laringe alcoolizada, a camisa, que exalava o perfume de alguma garota - quem, exatamente, ele já havia esquecido. Seria somente álcool o que lhe mexera tão forte na memória? Quem sabe? A água lhe chega ao sistema e um gutural gemido ressôa pela cozinha silenciosa: arrgg! O copo bate na pia sem coordenação motora e quase quebra, reverberando ondas sonoras pontiagudas que quase podem ser sentidas por ele. As ondas batem aqui, batem ali e sempre findam no fundo da sua cavernosa e ecoante cabeça.

- Saiam, ondas! Não são bem-vindas em meu sistema cárstico cerebral! - ele dizia, em voz alta, só fazendo o trânsito ondulatório aumentar pela casa.

Se esquivando dos sons, bambo, sem noção de espaço e equilíbrio, esbarra no armário e um copo de alumínio cai. Aquele barulho lhe soa longínquo, como algum eco que vem de uma gruta distante. Ele procura, mas não identifica. De onde viria aquele som misterioso, latente? - é o que se pergunta enquanto ruma para o sofá da sala. O corpo cansado, enfim, teria o merecido descanso depois de tanto ser surrado pela noitada de prazer desvairado.

- Isso... ahhh! - os nervos e os músculos das canelas suspiram aliviados, enquanto são erguidos em direção ao braço do sofá e o tronco se deleita no relaxamento visceral. Os pés, ainda calçados e com cheiro de vodka, que certamente algum amigo derramou, se dependuram no braço, soerguidos pelas panturrilhas e o corpo pesa uma tonelada. Tonelada que vira pedaço de algodão, ao passo inexato do tempo - que soa em sua cabeça no estalar do relógio da cozinha: Tic... Tac... Tic... Tac... as ondas sonoras, que voam no intervalo dos segundos e variam de período em sua desconexa rede neural, são sentidas por ele, que consegue percebe-las na pele pelo corpo todo. Além disso, senti-las, também, nos tímpanos. Tambor, nisto os couros do fundo dos seus ouvidos se transfiguram neste momento e, no intervalo de um segundo, são tamborilados pela incessante baqueta do tempo.

Aquilo vai lhe relaxando e o energético ingerido na orgia parece já não fazer efeito no organismo. O nervoso central vai se recolhendo e a apatia muscular se instaura. Apaga.


O Azarado

Há alguns quarteirões dali, um conhecido do bairro estaria prestes a cometer uma grande burrada.

Zói caminha pela avenida central do bairro. A noite é agradável, entretanto não apreciada por ele integralmente. Chuta pedra e pragueja, pois há dois dias conseguiu um bico e ganhou um qualquer - o que daria a ele condições de comprar uma roupa nova para passar o ano novo e, quem sabe, dar uma volta com uma garota - por quem era apaixonado, mas ainda não tivera coragem de se declarar.

- Ahh, Jessiquinha, no ano novo será minha! - ele pensava alto, cantarolante, enquanto carregava as caixas de frutas no sacolão do Sr. Elídio.

Este era o plano arquitetado, mas nem sempre o planejado se materializa, e foi isso que aconteceu. Chega o dia. Ele vai ao salão; faz a barba; se apara; compra goma de mascar e espera pelo melhor enquanto tira onda gingando com os braços para trás pelos becos da favela. Vê a rapaziada passando pela rua com garrafas de cachaça e comprimenta. Uma festa!

Mas o garoto não estava dentro dos padrões do considerado belo na época, sobretudo por ela, Jessiquinha - apesar do cabelereiro, barbeiro, roupa impecável e cheiro bom. Tanto esforço para nada! Jessiquinha, ao receber seu convite para ver os fogos da virada do alto Morro do piolho, riu do rapaz: - Sério, Zói? Haha! Se enxerga! Tenho um garoto mais zika pra roletar hoje - destrói a noite do rapaz e sai rebolando, com sua suculenta bunda, manga rosa, que ele, naquela noite, não sentiria os cheiro nem sabor.

ZóiOnde histórias criam vida. Descubra agora