Leite e protetor solar

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Cada vez mais a cidade se torna mais sólida. E não digo isso apenas no restrito sentido estrutural e arquitetônico, não. Digo, também, no âmbito sentimental e afetivo. Cada vez mais os engarrafamentos das tardes quentes têm aflorado o lado selvagem incrustado no DNA humano.


- Vamos lá! Sexta-feira! A semana foi dura, mas chegou ao fim e amanhã estarei de folga – pelo menos depois do meio-dia – assim Jonatan inicia, pungido.

Toma o ônibus portando sua mochila, que contém alguns utensílhos, como dois superlitros d'água congelada, alguns biscoitos recheados para almoçar e, como não poderia ser diferente, suas balas, paçocas e toda uma variedade de doces para vender.

O trocador já o conhece e sorri a ele um bom dia, complacente. Ele passa e absorve, costumeiramente, a boa energia de Complascêncio, mais conhecido como Compa. E acontece que, ao se sentar no banco, já tostado pelo sol escaldante do resto da semana, ele percebe, às sete da manhã, que aquele dia seria ainda mais caloroso. Sentado do lado da janela, em assento próximo ao trocador, como de costume, sentiu o vapor que entrava lhe soprar quente o rosto.

- Ôpaa! Hoje eu vou na poltrona central – arrastando o traseiro para o banco ao lado, comentou para si, não passando o comentário dispercebido ao Compa: o trocador, que exalava o frescor de um banho gelado e o cheiro agradável de gel de cabelo, sem dirigir-lhe o olhar e entregando o troco a uma senhora, o interpela:

- É, Jonatan, você deveria comprar um protetor solar para trabalhar debaixo desse sol o dia inteiro, rapaz.

- Não se preocupe com isso, Compa, pois, afinal de contas, o leite da minha filha vem em primeiro lugar. Mas não me entenda mal pela resposta. Agradeço imensamente por se preocupar, mas, não indiferente a isto, apenas o quero fazer entender que não está ao meu alcance desfrutar de certas regalias. Para que se esclareça ainda mais o que anteriormente explico, continuo o raciocício: tenho 23 anos e já fui criança um dia, logicamente; e, apesar das dificuldades, meus pais me deram condições mínimas de continuar vivo, me impedindo, assim, de ter que trabalhar para gerar meu próprio sustento; tendo isso em vista, sinto-me obrigado a, a exemplo deles, dar dignidade à minha princesa. E digo mais, ela sempre tem uma alimentação decente, nem que para isto eu tenha que ficar torrado feito um calango da caatinga.

- Isso é, né?! – Compa arremata o diálogo, segue cobrando suas passagens e mascando sua goma, com displicência ponderante. O rapaz, além da questão social abordada por Jonatan, se perguntava onde ele havia aprendido a falar de forma tão elegante. A reflexão também, desencadeada pela analogia que se insinuava fácil de se fazer entre o leite e o protetor solar, se engenhava na mente de Jonatan. Pois, embora sua filha necessitasse comer, isso era um fator que devesse limitar o seu acesso ao protetor, à saúde, à dignidade?! Neste momento ele olhava as rachaduras que se insinuavam violentas nas costas das suas mãos – apesar da pouca idade - enquanto o onibus sacolejava arranques troncudos. A pele avermelhada e seca, que lhe trazia vaga lembraça de lagos estéreis e rachados, cuja memória o remetia à sua infância, em Nanuque – MG, terra natal, o fazia questionar sobre a eficácia do estado em seu país, sobre a constituição recheada de direitos – que estavam resguardados a uma parcela pequena da população – e sobre como ele poderia se apoderar desses, sem infrigir as leis. Em contrapartida, num tranco do coletivo, ela via sua calça de marca e o tênis novo que se destacava um pouco à frente das surradas mãos.

- Isso, tenho dignidade! Posso não ter um emprego de carteira assinada, um carro ou moto que me leve ou traga do trabalho e, sobretudo, um protetor solar, mas mulambento eu não ando, isso não – ele comentava consigo, tentando se convencer de sua dignidade, que era provada, na ocasião, por suas extravagantes molas vermelhas no tênis.

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